Vamos falar de Produtividade? Quanto mais podemos produzir sem adoecer?

Vamos falar de Produtividade? Quanto mais podemos produzir sem adoecer?

Márcio Souza

 

Estou com a ideia deste texto há um bom tempo escrita em um post-it colado na parede do meu escritório de casa. Tempo suficiente para a tinta da caneta permanente perder seu viço. Uma das razões para esta procrastinação (sim, eu também faço isso;)) foi a tentativa de achar um caminho para trazer uma discussão complexa e eu não gostaria de ser mais um na fila daqueles que simplificam profundas questões sociais. 

Começo com uma situação que vivi em algum momento de 2019. Neste ano adotei a motocicleta como meio de transporte e, com alguma frequência, deixava a moto no consultório à noite para encontrar algum amigo ou minha esposa em um boteco antes de ir para casa. 

No dia seguinte chamei um Uber para ir de volta para o consultório. Sempre que estou desacompanhado, sento no banco da frente. E assim, o fiz. Percebi que a motorista não estava no melhor de seus dias. Tentei puxar assunto, mas depois de duas respostas atravessadas resolvi ficar calado. 

Alguns quarteirões depois ela se desculpa: “Márcio, desculpe, você não tem culpa por eu odiar este trabalho”. Perguntei com o que ela trabalhava antes e ela disse que trabalhou a vida inteira como secretária de um escritório e que faltavam apenas três semestres para que ela se formasse em engenharia, portanto, a única forma que ela via de pagar suas contas até terminar a faculdade era sendo motorista de aplicativo, mas com a quantidade de horas que ela precisava trabalhar ali, não sobrava muito tempo para o estudo. Logo chegamos ao meu destino e não pudemos aprofundar o assunto.

Infelizmente esta situação não é isolada. Por todo lado vejo o termo empreendedorismo sendo aplicado ao contexto onde o que existe é a precarização do trabalho. Usamos este termo para nos referir a contextos de trabalho que não contam com qualquer tipo de garantia para o trabalhador. Este processo não é novo, desde a década de 70 há estudos mostrando diferentes formas de perdas de garantias relacionadas ao trabalho. Nos anos 80 e 90, foram os bancários, no início dos anos 2000, os operadores de call centers, e mais recentemente os trabalhadores de aplicativos.

Mas a lista não para por aí. Recentemente, a lógica da precarização está alcançando as mais diversas profissões. Segundo o professor Ricardo Antunes da Unicamp, a precarização do trabalho “abrange um universo imenso de trabalhadores e trabalhadoras, de que são exemplos médicos, enfermeiros, cuidadores de idosos e crianças, motoristas, eletricistas, advogados, serviços de limpeza, consertos domésticos, entre tantos outros.” (2020, p.12). Ou seja, com raríssimas exceções, não existe mais trabalho protegido. 

Claro que para que tal delapidação aconteça, é necessário um conjunto de medidas que passam pela criação de políticas públicas que permitam a gradual retirada de direitos trabalhistas, flexibilização dos contratos de trabalho, manutenção de um contingente de desempregados, dentre muitos outros. Cada um destes processos é analisado por uma  infinidade de artigos acadêmicos respeitados tanto no Brasil quanto no mundo. Em função do recorte proposto para este texto, não entrarei nestas análises. 

De forma concomitante, observamos o surgimento de discursos que tentam “dourar a pílula” de tais transformações vendendo a ideia de que qualquer pessoa pode ser um empreendedor de sucesso, que com pouco dinheiro e conhecimento é possível se tornar um milionário na bolsa de valores ou que você pode ser o próximo Bill Gates ou George Soros. É justamente neste ponto que acredito ser necessário tomar cuidado, pois já vi muita gente falir fazendo day trade, pois haviam aprendido na internet como ganhar muito dinheiro com esta operação na bolsa de valores. 

Em tempo, alguns economistas formados que conheço não fazem este tipo de operação por considerarem o risco muito alto. Não apenas na área do mercado financeiro, basta uma rolada em qualquer rede social que já é possível encontrar uma enxurrada de anúncios de pessoas que vivem de vender fórmulas infalíveis de sucesso em todas as áreas possíveis e imagináveis. 

Contudo, existe um aspecto do fenômeno da precarização do trabalho que é a razão de ser deste texto que é a tentativa de aplicar às pessoas a mesma lógica de produção usada pelas indústrias ou pelas empresas de tecnologia.  

Já estamos vivendo a quarta revolução industrial, a chamada Indústria 4.0, caracterizada pelo uso intensivo de recursos computacionais  e de inteligência artificial para  produzir alterações nas expectativas dos clientes, criar produtos mais inteligentes e mais produtivos, promover novas formas de colaboração e parcerias e  converter o modelo operacional em modelo digital (COELHO, 2016). A ideia é que cada vez mais tarefas sejam assumidas por máquinas e computadores e cada vez menos atividades sejam designadas a seres humanos. 

Se, por um lado, o aumento de produtividade gerado pelos recentes recursos computacionais seja algo a ser comemorado, o que de fato me preocupa é a aplicação desta lógica a seres humanos. 

Tem sido frequente entre meus clientes, tanto de psicoterapia quanto de orientação de carreiras, o relato de sofrimentos referentes à sobrecarga de trabalho, dificuldade de conciliar o trabalho com a vida pessoal e familiar, sentimento de ineficiência, medo de demissão e muitos outros

Acredito ser imprescindível que o profissional que trabalha com estes sofrimentos tenha bom conhecimento do contexto sócio-político e econômico que vivemos. Afinal, não existe ser humano que viva longe das influências do contexto social que o cerca. Entendo o Ser-no-mundo, proposto por Heidegger, como um processo de individuação que é singular, mas acontece em um mundo já dado com todo seu caldo cultural. 

Antunes (2020) aponta a necessidade de articulação coletiva por parte dos trabalhadores a fim de forçar a reversão das perdas trabalhistas. Movimentos como estes estão espalhados pela Europa e ano passado assistimos aqui no Brasil uma paralisação de entregadores de aplicativos em meio à pandemia, contudo estas mobilizações, apesar de necessárias para a tentativa de reverter a precarização do trabalho, são iniciativas que não respondem aos sofrimentos daqueles que me procuram.

Acredito que, ao falarmos de produtividade, precisamos primeiro definir de que contexto estamos falando. Uma coisa é uma equipe programar ajustes para otimizar recursos em uma linha de produção ou o desenvolvimento de recursos de informática para que as pessoas gastem menos tempo na execução de tarefas repetitivas; outra coisa totalmente diferente é comparar o ser humano às máquinas e computadores que deveriam estar a serviço dele. 

Desde o Iluminismo tais comparações seduzem a humanidade desde o advento das primeiras máquinas automatizadas. Escuto para todo lado que fulano deu “tela azul”, beltrano precisa “trocar de processador” ou que alguém precisa instalar mais “memória RAM”. 

Confesso que fico muito incomodado com tais analogias pois, em minha compreensão, seres humanos precisam de alimento, segurança, descanso, afeto e realização. Coisas tão essenciais para nossa existência que duvido que ainda venha a existir alguma máquina capaz apreender o sentido de um afago em um momento de sofrimento, de uma noite bem dormida depois de uma semana exaustiva, de um olhar de apoio quando achamos que não daremos conta de algo, ou o brilho nos olhos de alguém que acabou de conquistar algo. 

Vamos fazer uma analogia? Em 1885 foi criada a primeira motocicleta que tinha a potência de 0,5cv e chegava a 12km/h. O modelo que pilota atualmente, que está longe de ser o mais potente em produção, produz 54vc, 108 vezes mais potência que a sua anciã e não sei qual é a sua velocidade máxima, pois nunca tive coragem de fazer este teste. Com o advento da engenharia é perfeitamente possível forçar o limite das máquinas e na indústria 4.0 este empurrão é dado com o recurso da inteligência artificial e demais recursos de computação. 

O problema desta lógica é que ela não afeta somente a mentalidade de gestores e empresas que esperam sempre que seus trabalhadores aumentem paulatinamente de produtividade, da mesma forma que se espera que as máquinas façam. O próprio trabalhador passa a se ver como máquina que precisa ser ajustada, programada, reprogramada e atualizada para produzir cada vez mais, sem perceber o custo desta lógica para sua saúde física e mental. Meu questionamento é a viabilidade deste raciocínio em termos da saúde do trabalhador. 

No anseio por produzir mais, trabalhadores consomem cursos e literatura com foco em  produtividade. Nas redes sociais não faltam gurus para te ensinar a ser mais produtivo. O que eu não vejo acontecer fora dos círculos acadêmicos (afinal a ciência está sempre atenta para não ser confundida com senso comum!) é alguém questionar quais são os limites por esta busca desenfreada por produtividade. A consequência de quando negamos os fatores sociais que fazem parte de um fenômeno, corremos o risco de atribuir aos indivíduos a responsabilidade por sua ineficiência. E é exatamente isso que tenho visto não apenas no consultório, mas também no discurso dos gurus da produtividade. 

Gostaria de deixar claro que não tenho problema nenhum em estudar produtividade, às vezes é preciso melhorar a forma como trabalhamos para termos tempo para nos dedicarmos às demais dimensões que são importantes em nossas vidas. Contudo, sempre acreditei que os recursos da produtividade deveriam estar a serviço do trabalhador para que ele possa ter o trabalho como fonte de realização e, para isso, é necessário haver uma vida fora do trabalho. 

Preciso encerrar este texto, pois desdobramentos estão borbulhando aqui em minha cabeça enquanto escrevo, mas estes serão objetos de outros textos, pois hoje ainda vou preparar o jantar e tocar um pouco de violão 😉 

Antes de encerrar, gostaria de fazer um alerta e fazer alguns convites para a reflexão. O alerta é que se não tomarmos cuidado, o trabalho tende a ocupar todos os espaços disponíveis em nossas vidas. Em uma lógica de produção que visa o lucro acima de tudo, o bem-estar do trabalhador, na maior parte das vezes, não é prioridade para as empresas, tanto que as recentes reformas trabalhistas foram aprovadas pelo congresso de 2016 para cá. 

Agora, alguns convites de reflexão: 

1- Se você está trabalhando demais, primeiro avalie a quantidade de demanda de trabalho que você recebe antes de achar que tem que ser mais produtivo. 

2- Caso perceba que a demanda é possível de ser administrada, mas mesmo assim não está conseguindo, aí sim é a hora de estudar um pouco sobre produtividade ou de procurar alguém que possa te ajudar a fazer alguns ajustes em sua rotina de trabalho.

3- Caso perceba que a demanda de trabalho é alta, tente avaliar se há abertura para diálogo com seu gestor para tentar equalizar esta demanda. 

3.1- Se seu gestor estiver aberto a este diálogo, ótimo, mas não se esqueça de entregar aquilo que combinou com ele. 

3-2- Se seu gestor não estiver aberto, talvez seja a hora de planejar uma transição de carreira. 

4- Mesmo quem é feliz no trabalho vive momentos de sofrimento, portanto não acredite em promessas que te comparem a uma máquina ou que promovam uma solução rápida para sua situação. Procure um profissional de quem você já tenha referência e que respeite a especificidade de suas necessidades e de suas aspirações. 

5- Antes de pensar em empreender, avalie muito bem sua situação. Procure consultoria para fazer um plano de negócios e se prepare em todos os aspectos para a implementação de seu negócio. Caso contrário, mesmo sendo empreendedor, você corre o risco de entrar na lógica da precarização do trabalho.

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