Caminhos para afinar expectativas entre trabalhadores e empresas na era do quiet quitting

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“Para Platão, as principais matérias a serem ensinadas aos jovens eram sobretudo ginástica, que harmoniza o corpo, e música, que harmoniza o espírito.”
(Domenico De Masi, em O ócio criativo)

Para encontrar caminhos possíveis e capazes de afinar as expectativas entre trabalhadores, trabalhadoras e as empresas, retomo as reflexões sobre os dois grandes fenômenos atuais que atravessam o mundo do trabalho: quiet quitting e great resignation. Começamos essa discussão no último artigo, compartilhado aqui no meu blog e, agora, seguimos com seu desdobramento e com a elaboração de algumas das saídas e meios para que tanto a demanda das pessoas como das organizações possa ser atendida dentro de uma harmonia, na qual trabalho, lazer, valores e propósito têm espaço, tempo e qualidade. Te convido, então, a seguir com a leitura. Vamos lá? 

Quiet quitting e great resignation: uma breve retomada

 Antes de entrarmos, no entanto, nas reflexões em relação às saídas para um encontro equilibrado entre produtividade e qualidade de vida, retomo, de forma breve, os conceitos de quiet quitting e great resignation. O primeiro fenômeno – traduzido como demissão silenciosa – pode ser entendido como um movimento que coloca em cheque a forma como o mercado de trabalho foi encarado até então e que vai na contramão de movimentos anteriores como da cultura do “work hard, play harder”- trabalhe muito, se divirta muito. 

Neste sentido, o quite quitting convoca as pessoas a cumprirem o mínimo desejado para que continuem empregadas, sem dar o máximo à empresa e ou superar suas limitações. O movimento do quiet quitting fala sobre realizar somente as tarefas que foram combinadas e estão dentro do escopo daquela função. Nada mais. Sem tarefas extras não remuneradas, sem ficar além do horário definido no escritório e sem trabalho aos finais de semana. 

Já o segundo fenômeno, great resignation – ou grande demissão – se refere aos milhões de trabalhadores que, voluntariamente, têm deixado seus postos de trabalho nas principais economias do mundo. O movimento global é caracterizado pelo desligamento voluntário do emprego e pode ser visto como um chamamento a uma nova forma de encarar a vida profissional, na qual o trabalho deve fazer sentido também para o empregador – e não somente para a empresa – e na qual se busca a preservação do bem-estar mental.

Mas, então, como afinar as expectativas entre empresas e trabalhadores? 

Para começar, como saída possível para trabalhadores e trabalhadoras, dentro de suas realidades e contextos, compreendo que esteja a busca por uma experiência de trabalho alinhada aos seus valores e que, de fato, faça sentido dentro da sua compreensão de vida e de propósito. 

Então, mais do que buscar por uma vaga de emprego, acredito que seja importante avaliar se aquela empresa em questão – mais do que uma função – oferece oportunidades de atuação e de desenvolvimento que estejam alinhadas às expectativas profissionais e pessoais. 

Desse modo, aspectos relacionados à cultura da empresa precisam ser observados. Além disso, o autoconhecimento é importante para que as pessoas se façam perguntas como:  “será que esse trabalho atende minhas demandas e propósitos?” “será que estou numa área que me faz feliz? Estou numa empresa alinhada com meus valores? Estou de fato no caminho profissional que gostaria?” 

Quando a resposta para a maior parte dessas perguntas é “não”, podemos estar diante de um desinteresse ou de um distanciamento que podem levar ao quiet quitting. Sob a perspectiva de especialistas em negócios e que olham apenas pelo ponto de vista da empresa, a aderência à demissão silenciosa pode impedir a evolução profissional.  

No entanto, existe nesse argumento uma armadilha que é a da promessa de ascensão social e enriquecimento por meio do trabalho pesado. Na verdade, essa promessa não passa de um engodo, de uma falácia, de mais um instrumento de exploração da mão de obra e que gera um trabalhador angustiado, inseguro de si e da sua função. 

Na tentativa exasperada de satisfação profissional e de realização do que se espera de desempenho, em um contexto superexigente, as pessoas acabam por colocar em risco sua saúde e sua vida pessoal. 

Entendo que diante dessa conta que não fecha, o caminho talvez seja recalcular a rota e planejar a busca por algo que faça mais sentido para suas escolhas pessoais. O poder da escolha é libertador. Aquilo que se apresenta, me representa? Se perguntar e refletir é ponto chave e destrava portas.Sendo assim, no artigo anterior, mencionei a pandemia como um dos fatores que colaboram – ou colaboraram – para as transformações no mundo do trabalho e para o surgimento dos fenômenos quiet quitting e great resignation. Compartilho, agora, da visão do sociólogo italiano, Domenico De Masi, que, em recente entrevista ao jornal O Globo, destaca que:

“a pandemia também acelerou a conscientização entre os profissionais de que seu trabalho pode ser realizado de forma mais livre e satisfatória, aumentando tanto a produtividade quanto a qualidade de vida. E convenceu milhões de trabalhadores de que o trabalho não é humano se não for inteligente e livre.”

Desse modo, vejo os fenômenos do quiet quitting e do great resignation como a postura atual de decidir não servir mais a um modo de produção que se impõe de forma tirana, ditando o ritmo de trabalho e o que deve ou não ser priorizado, ocupando toda a vida dos trabalhadores. Ao perceber essa situação invasiva, muitas pessoas começaram a priorizar a qualidade de vida e seus projetos pessoais, mesmo que em detrimento de uma maior ascensão profissional.

“a bem da verdade, o que significa aproximar-se do tirano senão afastar-se de sua liberdade e, por assim dizer, agarrar com as duas mãos e abraçar a escravidão?”
(​Etienne de La Boétie, em o Discurso da Servidão Voluntária)

E as empresas, o que elas podem fazer para atender às expectativas e  evitar situações de quiet quitting e great resignation?

Chegando agora no espaço das organizações, entendo que entre as saídas possíveis para maior e melhor engajamento dos trabalhadores e trabalhadoras estão o repensar o modelo de produtividade – abandonando a visão míope e retrógrada de poder baseada no castigo e recompensa, controle físico e emocional dos funcionários – e o promover políticas de retenção de talentos eficientes. 

As transformações do mundo do trabalho e de gestão de pessoas apontam para ações que colocam a produtividade como resultado da motivação dos envolvidos. Para isso, é preciso promover a autonomia, abrir espaços para as habilidades de cada um e estabelecer uma relação de confiança, não de controle ou de imposição. 

Neste sentido, divido aqui o conceito de “smart working”, definido por De Masi, que trata de “uma abordagem de organização do trabalho que visa a gerar maior eficiência e eficácia na obtenção de resultados por meio de uma combinação de flexibilidade, autonomia e colaboração, em paralelo com a otimização de ferramentas e ambientes para os trabalhadores. Obviamente, nem todos os trabalhos são teletrabalháveis: por exemplo, um barbeiro ou um cirurgião não podem teletrabalhar. Além disso, o smart working é voluntário: depende de um acordo livre entre o trabalhador e a empresa, e ambos podem desistir a qualquer momento.”

Por fim, acredito que seja importante destacar que compreender o incentivo para desenvolver projetos criativos e paralelos e respeitar o tempo para atividades pessoais e de lazer dos trabalhadores e trabalhadoras não se trata de prejuízo ou perda de produtividade. 

Pelo contrário, ao proporcionar um encontro harmônico entre as expectativas da empresa e das pessoas contratadas, é possível investir em forças potentes, capazes de gerar mais confiança, bem-estar e qualidade de vida, fatores catalisadores de maior engajamento, comprometimento e atração. Um exemplo é a importância dos programas de retenção de talentos, que se trata de uma forma de tornar a empresa mais atraente para os trabalhadores.

Para finalizar este artigo, entendo que devemos seguir por um caminho de questionamentos, de revisão e de enfrentamento do que sempre foi posto. Para isso, entendo também que seja fundamental afinar os acordes de um instrumento de escuta e de compreensão, de horizontalidade, no qual os anseios possam ser compartilhados, sem dominação ou intimidação, mas com liberdade e humanidade. Gostaria de pontuar essa questão com algo bastante prático. 

No consultório, muitos clientes, quando tomam conhecimento de novidades como o trabalho híbrido ou a semana de quatro dias, por exemplo, sempre me questionam de que forma isso poderá ser usado contra eles. É um alerta importante e, desse modo, acho fundamental incluir aqui que estas medidas, quando tomadas, devem ser tomadas visando, genuinamente, o bem-estar do trabalhador e da trabalhadora e a melhora do ambiente de trabalho, caso contrário, poderão não surtir efeito.

“no início serve-se contra a vontade e à força; mais tarde, acostuma-se, e os que vêm depois, nunca tendo conhecido a liberdade, nem mesmo sabendo o que é, servem sem pesar e fazem voluntariamente o que seus pais só haviam feito por imposição. Assim, os homens que nascem sob o jugo, alimentados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam ter outros direitos nem outros bens além dos que encontraram em sua entrada na vida, consideram como sua condição natural a própria condição de seu nascimento”.
\(​​Etienne de La Boétie, em o Discurso da Servidão Voluntária)

Espero que as reflexões trazidas aqui tenham sido úteis. Fiquem à vontade para compartilhar outros pontos de vista! Nos encontramos no próximo artigo!

Até lá. 

Fontes:
O Globo
Isto É
UERJ
Discurso Sobre a Servidão Voluntária – Étienne de La Boétie

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