Psicoterapia: acolhimento e prática de liberdade para encontrar a si em meio ao mundo

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“Aceitar a conscientização como horizonte não exige tanto mudar o campo de trabalho, mas a perspectiva teórica e prática a partir da qual se trabalha.” (MARTÍN-BARÓ, 1997:7)

Percebi que já era hora de escrever novamente sobre psicoterapia. Na verdade, talvez seja sempre hora de falar sobre psicoterapia, pois percebo que ainda pairam muitas concepções equivocadas, tanto na forma como a psicoterapia é divulgada por profissionais que acompanho, como no discurso e expectativas de alguns clientes. Desse modo, este texto tem, então, o objetivo de partilhar com vocês algumas reflexões que faço a respeito deste tema que também é, em grande parte, objeto de minha prática e de meus estudos. 

Começo compartilhando com vocês que ser psicoterapeuta nem sempre foi meu objetivo profissional. Minha carreira teve início pela psicologia educacional, completamente direcionada para a orientação profissional e para suas relações com a saúde psicológica. Inclusive, foi este o tema do meu mestrado. Neste momento, os pensamentos sócio-históricos de Vigotski e, especialmente, de Fernando González Rey, eram a base do meu trabalho.

Dois anos após minha formação, concluí o mestrado e comecei a atuar na orientação profissional de adolescentes e jovens adultos. Mas não demorou muito para que a demanda pela psicoterapia surgisse por parte desses clientes que encerravam o processo de orientação e que desejavam iniciar o processo psicoterápico comigo. Assim, em função deles, e de minhas ótimas lembranças dos estágios em clínica na época da faculdade, decidi começar a acolher estes pedidos e, consequentemente, a procurar um supervisor e incluir o tema em minha rotina de estudos.

Sobre a relação entre subjetividade, sociedade e teoria

Seguindo minha trajetória, já como professor universitário e supervisor de estágios, me deparei com a leitura de “O Existencialismo é um Humanismo”, de Jean-Paul Sartre, de quem eu já havia lido algumas peças literárias. A paixão foi imediata e, desde então, me dedico ao estudo do existencialismo e da fenomenologia, corrente de pensamento que ilumina toda minha prática, seja da orientação profissional ou da psicoterapia. 

Embora o pensamento sócio-histórico e o pensamento fenomenológico não possam ser sobrepostos, pois possuem entre si alguns conflitos referentes à visão de homem e ao referencial metodológico, há algo em comum entre eles que é a visão crítica a respeito da Psicologia e, principalmente, do papel social desempenhado por esta ciência. Ambos referenciais, à sua maneira, criticam a visão determinista que frequentemente é assumida pela Psicologia e destacam a importância de uma compreensão social da inserção do indivíduo no mundo que ele habita. 

Sendo assim, posso resumir o papel desempenhado pela Psicologia em duas direções diametralmente opostas: uma é a vertente que privilegia a adaptação do indivíduo à sociedade e a segunda é a que privilegia a compreensão do indivíduo que existe em meio à sociedade, mas que é livre para definir se deve ou não se adaptar às contingências às quais é submetido na vida social. Destaco aqui que minha escolha como profissional sempre foi pela segunda vertente. 

Não vou me alongar muito a respeito da Psicologia que se propõe como adaptativa/normativa, pois nesta vertente a sociedade e suas normas não são questionadas e a ordem social, muito frequentemente, atropela as necessidades do indivíduo. Exemplos desta ótica são muito bem retratados pelo cinema em obras como “Estranho no ninho”, “Bicho de sete cabeças” e “Garota interrompida”. 

Parto então para a concepção da Psicologia que me estimula e me move. Desde o início de minha formação como psicólogo senti uma grande atração pelas teorias que se propunham a compreender o ser humano em sua diversidade e complexidade. Sempre me afastei de enfoques interpretativos por acreditar que, frequentemente, as interpretações são formas de condicionar a realidade a uma determinada teoria. Acredito no oposto, na necessidade de adequar as teorias à realidade. Caso contrário, ao meu ver, estaríamos colocando o ser humano em uma forma (pré) definida pelos limites de uma teoria qualquer. Pois, como afirma González Rey (2002):

A teoria é uma construção sistemática, confrontada constantemente com a multiplicidade de idéias geradas por quem as compartilha e quem se opõe a elas, do que resulta um conjunto de alternativas que se expressam na pesquisa científica e que seguem diferentes zonas de sentido sobre a realidade estudada.” (P.59-60)

Neste sentido, o papel teoria é o de permitir a compreensão dos fenômenos estudados, mas sem nunca deixar de confrontá-la com as diferentes realidades que tentamos compreender. É justamente da tensão entre a realidade e o conhecimento existente que se torna possível a constante revisão das teorias.   

Psicoterapia e de qual ser humano estamos falando?

A pergunta deste subtítulo pode parecer uma pegadinha, mas garanto que não é. As principais faculdades que nos separam dos demais animais que habitam o planeta são a complexidade de nossa linguagem e nosso intelecto. Portanto, desde que os registros escritos começaram a ser usados, temos notícia de uma grande variedade de pensadores que se dedicaram a compreender a existência humana, sob os mais diferentes referenciais. Isso faz com que sempre que falamos de Psicologia seja necessário apontar de qual destes destes referenciais partiremos e qual tomaremos como baliza para nossa compreensão. 

Assim, como destaquei no início do texto, o existencialismo é a guia que utilizo para compreender minha prática. Por esta perspectiva, o homem é compreendido como um ser no qual a existência precede a essência. A este respeito Sartre explica:

O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que em primeira instância, o homem existe, encontra-se a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. (…) O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: esse é o primeiro princípio do existencialismo.” (1987:6)

Para que não ocorra o risco de simplificar a afirmação acima, é importante lembrar que Sartre destaca qual papel da situação na existência humana e sua íntima relação com a liberdade. Não vivemos soltos no espaço, fazemos parte de uma sociedade e somos coautores de sua história. Desse modo, a afirmação nos aponta que, embora o mundo nos imponha uma série de condições que estão fora de nosso campo de escolhas, somos responsáveis por nossa existência, em qualquer que seja o contexto em que ela esteja inserida. 

A este respeito, Mendonça (2013) alerta para atitudes remanescentes do humanismo individualista antropocêntrico que habitam a prática psicológica. A autora alerta que em nome de acolher o indivíduo que se encontra em psicoterapia, muitas vezes o terapeuta acaba por legitimar no cliente uma visão de si como ser destacado e isento de qualquer relação com o mundo social que o cerca. Estas práticas desvinculam o Eu do Outro e ignoram “a noção de que a preocupação do sujeito lhe pertence e tem sua razão de ser na totalidade mais ampla de suas motivações existenciais.” (p.82).

Concordo com a compreensão da autora de que a ética humanista se norteia por dois vetores (p.83):

  1. A reverência fenomenológica do terapeuta pela experiência do cliente, seja ela qual for. Ou seja, a garantia de uma atitude fenomenológica por parte do terapeuta a fim de facilitar um encontro empático com os sentimentos e pensamentos do cliente. Esta atitude será o fundamento de uma relação capaz de permitir ao cliente a ressignificação e transformação de seus sofrimentos.
  2. A preocupação do terapeuta com a comunidade próxima do cliente. Esta preocupação se faz presente, pois existimos em uma condição de ser-com. Nossa subjetividade é construída também a partir da relação com os outros que estão à nossa volta. Não há um ser que possua uma subjetividade que não esteja inserido em uma intersubjetividade. Portanto, uma saída saudável para o sofrimento é aquela que considera a relação do indivíduo com os demais.

E a psicoterapia, em que consiste?

Sartre, assim como outros intelectuais franceses do início e meados do século XX, era um grande estudioso tanto da psicanálise quanto da fenomenologia. Este trânsito permitiu que, em sua obra, “O ser e o nada”, ele dedicasse um capítulo no qual tece críticas à psicanálise tradicional e reflete sobre o processo psicoterápico à luz de seu existencialismo. Neste texto, ele aponta:

“Se admitimos que a pessoa é uma totalidade, não podemos esperar reconstruí-la por uma adição ou uma organização das diversas tendências empiricamente nela descobertas. Mas, ao contrário, em cada inclinação, em cada tendência, a pessoa se expressa integralmente, embora seguindo uma perspectiva diferente (…). Sendo assim, devemos descobrir em cada tendência em cada conduta do sujeito, uma significação que a transcenda.” (1997:689)

Sartre aponta neste trecho para a necessidade de desfazer a dualidade sujeito-sociedade em nome de uma compreensão na qual indivíduo e sociedade tornam-se uma unidade em relação. Não é possível pensar o indivíduo destacado da sociedade, nem tampouco a sociedade como se indivíduos não fizessem parte dela. Esta relação entre indivíduo e sociedade é invariavelmente única, pois cada um de nós, mesmo que inseridos na mesma cultura e na mesma sociedade, ocupamos lugares e papéis distintos, e a percebemos de forma singular. 

Assim, um comportamento não se resume ao ato isoladamente, podendo apenas ser compreendido a partir da relação específica que a pessoa que o emite tem com a sociedade em todas as dimensões, incluindo sua história pessoal. São estas relações que a psicoterapia deve buscar explorar e trazer à consciência para que, a partir delas, novos sentidos e novas escolhas possam surgir. 

Aqui retomo a epígrafe deste texto:

“Aceitar a conscientização como horizonte não exige tanto mudar o campo de trabalho, mas a perspectiva teórica e prática a partir da qual se trabalha.” (MARTÍN-BARÓ, 1997:7)

A conscientização citada por Martín-Baró é de uma natureza diferente daquela que costumamos usar em psicoterapia, contudo, percebo que ambas são complementares. É perfeitamente possível que a psicoterapia promova tanto uma compreensão de si a partir da sua história pessoal como de uma compreensão que considera a história da sociedade da qual participa. A ideia, então, é romper com a dicotomia indivíduo-sociedade e permitir que a pessoa construa uma compreensão de si como ser singular em relação com aqueles que coexistem com ela e com a sociedade como um todo. 

Ainda sobre o processo psicoterápico Rogers indica:

“Este processo implica uma certa maleabilidade na capacidade de apreensão dos mapas cognitivos da experiência. Partindo de um ponto em que a experiência é construída em quadros rígidos , captados como exteriores, o paciente caminha para um desenvolvimento que o modifica para a construção maleável de significações da experiência, construções que cada nova experiência modifica.” (1975:67)

Em geral, o sofrimento psicológico está relacionado a compreensões de si que foram construídas ao longo da vida da pessoa, mas que não são coerentes com o momento atual de sua existência. Desse modo, o processo de psicoterapia visa colocar essas compreensões desatualizadas sob uma perspectiva atual, promovendo elaboração de novos sentidos, mais flexíveis, para as compreensões antes enrijecidas. 

Para finalizar…

Gosto da proposta  de Mendonça (2013) que, inspirada na compreensão humanista, indica que um projeto terapêutico humanista (e eu acrescento, existencial), “deve ser guiado pelo propósito de promover duas dimensões da cura existencial”. (p.86)

  1. A permissão dada pelo cliente para deixar de ser aquilo que está sendo. Ao longo de nossa vida, desenvolvemos diversas crenças e compreensões a nosso respeito que formam nossa identidade. É a partir delas que nossa vida adquire uma certa estabilidade, pois a identidade permite o reconhecimento de nossa realidade sem que tenhamos que responder sempre as mesmas perguntas (quem sou, quais meus valores, quais relações importantes, etc). A partir dos questionamentos proporcionados pela psicoterapia, algumas destas crenças e compreensões são revisadas e podem sofrer alterações. Este processo pode parecer assustador e requer tempo para que a pessoa em terapia se autorize a seguir em frente com essas mudanças.
  2. Acesso do cliente à capacidade de estabelecer relações de intimidade no espaço próximo de convivência. Nem sempre estabelecemos relações genuínas com as pessoas à nossa volta. Muitas vezes, nos conectamos com os outros a partir do papel que eles desempenham em nossas vidas ou a partir daquilo que eles nos proporcionam. Com o desenrolar do processo psicoterápico, o cliente terá a oportunidade de tomar consciência de suas relações e, aos poucos, substituir relações utilitárias por outras mais genuínas, com mais abertura para a intimidade.

Gostaria de ressaltar que, neste texto, busquei apenas apresentar algumas reflexões a respeito do enfoque que adoto em minha prática como psicoterapeuta. Como apaixonado pela epistemologia, fiquei incomodado em não apresentar detalhadamente como faço a costura dos diferentes autores que cito no texto, pois alguns deles são de matrizes de pensamentos diferentes entre si. No entanto, apesar de meu incômodo, busquei simplificar esta apresentação sem a pretensão de impor ao texto um caráter mais acadêmico. 

Contudo, me coloco à disposição para quem tiver interesse em conversar sobre a articulação epistemológica dos autores aqui citados. 

Espero que este texto tenha servido para apresentar um pouco sobre minha forma de compreender a psicoterapia e de suscitar alguns questionamentos em quem se interessa pelo tema.

Até o próximo!

 

Referências:

GONZÁLEZ REY, F. Pesquisa Qualitativa em Psicologia. São Paulo: Thomson, 2002.
MARTÍN-BARÓ, I. O Papel do Psicólogo. Estudos de Psicologia (Natal) 2(1), 1997.
MENDONÇA, M. M. A psicologia humanista e a abordagem gestáltica. em: FRAZÃO, L. M; FUKUMITSU, K. O. Gestalt-terapia – fundamentos epistemológicos e influências filosóficas. São Paulo: Summus, 2013.
ROGERS, C. Tornar-se Pessoa. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1975.
SARTRE, J. P. O Existencialismo é um humanismo. Coleção os Pensadores. 3ªed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
SARTRE, J. P. O ser e o nada – ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1997. 

 

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