As relações sociais no trabalho: subjetividade e afetos em jogo

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O trabalho e as relações sociais tecidas por ele. Há alguns meses me pediram para escrever um texto sobre este assunto e seus desdobramentos. Confesso que, diante dessa demanda, fiquei animado e paralizado ao mesmo tempo. Animado, porque trata-se de um tema ao qual me dedico desde meu início na psicologia. Paralizado, porque é um tema tão complexo, com tantas interfaces, que fiquei sem saber por onde começar. 

Decidi, então, costurar este artigo a partir do compartilhamento de algumas reflexões e conceitos que estão em voga hoje no mundo do trabalho, mas sem qualquer pretensão de esgotar a temática em nenhum dos aspectos abordados aqui. Diante disso, meu objetivo com este texto é incentivar uma reflexão crítica a respeito da complexidade pertinente às relações sociais no trabalho, como a questão da subjetividade e dos afetos que atravessam esse lugar, explorando suas camadas e possibilidades. Vamos lá?

Utilitarismo no mundo do trabalho: o bem-estar coletivo deixa espaços para a subjetividade?

Para começar nossa conversa, gostaria de apresentar o conceito de utilitarismo, uma doutrina filosófica caracterizada pela ideia de que as ações humanas devem promover a felicidade e o bem estar a partir de uma perspectiva coletiva. Ou seja, o utilitarismo defende que a única condição moral é aquela que busca gerar a felicidade para o maior número de pessoas e que nossas ações são definidas como certas ou erradas, dependendo dos efeitos gerados no outro. 

Bem, quando colocamos o utilitarismo no mundo do trabalho, podemos identificar diversas práticas bastante difundidas na sociedade que têm como objetivo promover esse “bem-estar” nas relações sociais. Dentre elas, podemos destacar o networking, que defende a criação de uma rede sólida de contatos, decisiva e essencial para o desenvolvimento profissional e para a progressão na carreira. 

Desse modo, o fazer networking é estar entre as pessoas certas, estabelecer as conexões estratégicas e, então, “cavar” suas oportunidades de sucesso profissional. É por meio da convivência e apoio de pessoas que compartilham propósitos e objetivos comuns, que se conquista. 

Um outro exemplo de prática que busca a promoção do bem-estar coletivo no ambiente de trabalho e nas relações sociais é a inteligência emocional ou, em uma linguagem mais atual, as soft skills. Hoje em dia fala-se muito em desenvolver soft skills, que são as chamadas habilidades comportamentais relacionadas a maneira como as pessoas lidam com o outro e consigo mesmas em diferentes situações dentro do espaço do trabalho. Assim, as soft skills são habilidades humanas subjetivas, que, muitas vezes, não podem ser mensuradas.

Em princípio, essas duas compreensões a respeito das relações sociais no trabalho podem parecer sensatas e inocentes, mas, ao meu ver, elas, na verdade, mascaram formas sutis de controle da subjetividade. Por isso, retomo o conceito do utilitarismo, pois, se o objetivo da ação humana está voltado para a felicidade e bem-estar coletivos, onde fica o espaço para a subjetividade? 

Mais especificamente, como ficam aquelas pessoas cujos sentimentos destoam da expectativa do ambiente no qual elas estão inseridas? As práticas como o networking e desenvolvimento de soft skills podem se concentrar mais no meio do que no sujeito. Mas o que isso significa? Falaremos mais a seguir. Acompanhe.

O controle para ficar sob controle 

Vamos agora refletir sobre quais aspectos podem estar escondidos por trás do véu das ações que visam o bem-estar coletivo. Uma forma de compreender é que ao se estabelecer modos de comportamento e pensamento no mundo do trabalho, pode se estabelecer, na verdade, uma forma de controle para deixar tudo sob controle dos interesses comerciais e econômicos. 

Neste sentido, temos a análise do professor Roberto Heloani, em seu livro “Gestão e Organização no Capitalismo Globalizado”, que nos mostra, por meio de um estudo minucioso, como as diferentes formas de gestão têm o objetivo de controlar “corações e mentes” dos trabalhadores, estimulando as percepções daquilo que é aceitável e esperado em termos de conduta do trabalhador. 

O autor revela como os sistemas de gestão e seus modos de controles atuam sobre o indivíduo. E, ainda que seja um controle mais sutil, coloca o profissional dentro de um padrão e leva ao cerceamento de suas manifestações mais singulares. No livro, são citados diferentes tipos de controle, que existem, em maior ou menor grau, nas organizações modernas, como:

  • controle do corpo, objeto da ergonomia, dos tempos e movimentos, o tempo do trabalho e do descanso, a lógica do aproveitamento disciplinado do tempo e do espaço; 
  • controle burocrático ou normativo, ligado à obediência às normas e aos controle dos controles; 
  • controle cognitivo, a expropriação do “saber fazer” do trabalhador pela gerência; 
  • controle intelectual e da capacidade criativa e inovadora dos sujeitos, passível de reconversão através de técnicas de participação, sugestões e gestão de melhorias contínuas; 
  • controle afetivo, buscando suscitar uma adesão incondicional a um projeto coletivo, no qual a empresa figura como onipotente e digna de amor (ou pelo menos de admiração);
  • controle emocional, através do qual deve-se casar a racionalidade e a paixão para os objetivos organizacionais. 

Desse modo, Heloani coloca as ações do profissional como direcionadas e condicionadas à organização. Os movimentos que superficialmente podem parecer voltados ao sujeito vão, na verdade, no sentido contrário, no sentido da manutenção do status quo do negócio. 

Nesta mesma linha de pensamento, temos Byung-Chul Han, que nos apresenta o conceito de psicopolítica em contraposição ao conceito de biopolítica trabalhado por Foucault. Segundo Han, o caráter imaterial da produção econômica atual faz com que o controle disciplinar perca seu efeito e seja substituído pelo controle da subjetividade, por meio da orientação de desejos e formas identitárias disseminadas pelas mídias sociais. 

Ao contrário do previsto por George Orwell, no livro 1984, hoje, a própria população entrega sua intimidade para aqueles que usarão estas informações para controlá-la. A exposição de si é insumo para ofertas de bens de consumo e de modos de vida. É o uso do inconsciente a favor do lucro, da produtividade e do mercado.

Em “Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder”, os autores citam que, segundo Han, “o capitalismo descobriu a psique como sendo uma força produtiva e o “corpo dócil”, que fora anteriormente citado por Foucault, já não tem mais lugar nesse processo de produção, que agora dá lugar ao “sexy e fitness” como características supervalorizadas.”

Desse modo, esse “corpo neoliberal” deve ser, constantemente, melhorado em eficiência e desempenho, assim como em suas capacidades cognitivas. 

Bem, não é à toa que assistimos, de um lado, uma explosão de pessoas que se autointitulam empresários quando, na verdade, vivem em subempregos e, de outro, uma pressão para que aqueles que possuem um emprego formal desenvolvam as habilidades relacionais exigidas em seus contextos de trabalhos. Há sempre uma cobrança de melhoria de performance e uma alienação de si que andam em paralelo. 

Assim, mais uma vez retomo a perspectiva utilitarista, na qual a preocupação com o coletivo é usada como fachada para encobrir as diferentes formas de controle da subjetividade a qual os trabalhadores estão submetidos. 

Neste contexto, recursos pessoais como proatividade, resiliência, iniciativa, empatia, sociabilidade, dentre outros, são usados como forma de constranger aqueles que não apresentam estes recursos, ou que não os apresentam da forma como a instituição espera. Veja bem, na forma como a organização espera e não como a pessoa se sente, se vê ou se reconhece. 

Então, se alguém não está disposto a ir à festa da empresa, esse alguém não tem sociabilidade. Se não trabalha fora do expediente e tenta organizar suas tarefas dentro do horário de trabalho, esse alguém não tem proatividade. Se discorda de um colega, não tem empatia. Se tem receio de sobre uma retaliação e procura orientação em sua liderança, não tem iniciativa. Se deseja um trabalho estável, não é empreendedor. Se está satisfeito com seu cargo e não busca por promoções, vive em sua zona de conforto e não tem ambição. A subjetividade é encoberta e fica apenas o modelo exposto  – é exigido.  

A pandemia e a perda de espaço das relações sociais no trabalho 

Compartilho agora um outro aspecto importante nas relações sociais no trabalho. Se, por um lado, o ambiente de trabalho pode ser fonte de sofrimento psicológico, é verdade também que ele é um dos principais espaços de socialização de indivíduos adultos. É fato que passamos a maior parte de nosso dia no trabalho e é inevitável que relações genuínas de amizade e companheirismo venham a florescer neste contexto. 

Neste sentido, é evidente que a pandemia mudou completamente a forma como trabalhamos e, consequentemente, nos relacionamos. Para alguns, o trabalho remoto virou realidade, para outros, um sistema híbrido e, mesmo para quem voltou a trabalhar totalmente presencial, a necessidade de distanciamento social se mantém e afeta a dinâmica das relações dentro das empresas. 

No estudo, “Percepções dos Impactos da Covid-19”, do Instituto Ipsos, que ouviu participantes em 28 países, o Brasil é o local onde as pessoas mais se sentem solitárias: 50% das que responderam à pesquisa têm essa sensação. A solidão é algo subjetivo que vai muito além de se estar sozinho. A solidão pode estar relacionada à tristeza, à melancolia, medo, sensação de vazio, fracasso, vergonha e com o sentimento de não ter com quem contar. Nos modelos atuais de trabalho, a solidão pode ser uma companhia indesejada.  

De acordo com a economista britânica Noreena Hertz, “a progressiva institucionalização da vida a sós ocorre dentro de um sistema, a doutrina neoliberal, que há várias décadas vem alterando profundamente as relações trabalhistas, sociais e pessoais, levando ao isolamento”. 

Em seu livro, O Século da Solidão, ela analisa alguns dos serviços desta nova economia, como uma empresa de aluguel de amigos, da qual foi cliente e contratou uma amiga-acompanhante. Hertz contou que, após certa insistência, a amiga contratada descreveu seus outros clientes como sendo “profissionais solitários entre 30 e 40 anos, o tipo de gente que trabalha muitas horas e não parece ter tempo para fazer muitos amigos”.

Os seres humanos são seres sociáveis e o afastamento do convívio, das trocas e do contato físico vão na contramão de uma natureza. Estar entre pessoas, se sentir parte de um grupo, partilhar e compartilhar são verbos conjugados no âmbito coletivo. 

Desse modo, no contexto do trabalho presencial, as pessoas tendem a se conectarem de forma mais espontânea. O bolo e o pão de queijo, que alguém leva para o café, viram pretexto para uma pequena pausa e uma breve conversa. Os almoços em grupo, o rodízio de caronas, o fretado e até mesmo a esticada de pescoço para trocar uma ideia com o colega da mesa do lado. Todas estas são situações de troca que não cabem no trabalho remoto.

Mas, veja bem, não estou aqui defendendo o trabalho exclusivamente presencial, pelo contrário, eu mesmo trabalho à distância a maior parte do tempo. O que estou problematizando e refletindo é sobre a perda desse campo relacional em que as trocas afetivas tendem a surgir de forma mais espontânea.

Para o filósofo Spinoza, “o afeto consiste na capacidade de aumentar ou diminuir a potência de ação do corpo e da mente, motivada pelas afecções. Essa transição, por sua vez, pode ser entendida através das afecções de alegria e tristeza, segundo as quais corpo e mente passam a uma perfeição maior ou menor, respectivamente.” Ou seja, é por meio dos afetos que agimos e, para isso, é necessário que haja contato, proximidade. 

Por fim, vale destacar que as relações sociais no trabalho devem extrapolar os muros dos interesses corporativos e mercadológicos. É preciso que haja, ao meu ver, respeito coletivo à subjetividade. As pessoas e as relações no ambiente de trabalho precisam ser olhadas com profundidade. A superfície é incapaz de abrigar a complexidade que envolve o sujeito, seu labor e os afetos que o atravessam. 

Espero que as reflexões compartilhadas aqui possam despertar para muitas outras questões acerca das relações sociais no trabalho. Como disse no início deste artigo, os pontos trazidos não se encerram. Eles foram colocados como pontos de partida.

Até o próximo! 

 

Fontes:
Byung-Chul Han. Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2020.
Roberto Heloani. Gestão e Organização no Capitalismo Globalizado: História da manipulação psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.
Scielo 
Cadernos de Psicologias  
El País 
Unesp

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