Quiet quitting e great resignation: dois fenômenos do mundo do trabalho que convocam à mudança

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“Resolvam não servir mais, e serão imediatamente libertados. Não peço que coloquem as mãos sobre o tirano para derrubá-lo, mas simplesmente que não o apoiem mais; então o observarão, como um grande Colosso cujo pedestal foi arrancado, cair de seu próprio peso e quebrar-se em pedaços”.
(O Discurso da servidão voluntária, de Étienne de La Boétie)

Subverter a ordem que vigora. Subverter a ideia que impera. O mundo do trabalho é atravessado por dois grandes fenômenos, o quiet quitting e o great resignation, que têm movimentado as estruturas, até então bem sólidas, do modo de realizar as atividades profissionais. Como estudioso das relações sociais e do trabalho e como orientador profissional e de carreiras, compartilho neste artigo alguns dos aspectos desses dois movimentos que convocam trabalhadores – e empresas  – a repensarem o modelo tradicional de trabalho e a desenharem novas formas de atuação enquanto profissionais e corporações. Te convido para essa leitura e para, juntos, refletirmos sobre como os fenômenos “quiet quitting” e  o “great resignation” podem representar uma importante transformação não só no modo como se trabalha, mas, especialmente, no modo como se vive. 

Vamos lá?

 O que são os fenômenos quiet quitting e great resignation?

Para dar início a nossa conversa por aqui, gostaria de fazer uma ambientação dos fenômenos quiet quitting e great resignation. O primeiro conceito ganhou destaque depois que a hashtag #quietquitting viralizou, no TikTok,  com a publicação do vídeo de um engenheiro de 24 anos, chamado Zaid Khan, que explicou o que seria a proposta da quiet quitting – ou demissão silenciosa em português:

“Você não está desistindo do seu emprego, mas está abandonando a ideia de ir além no trabalho”. “Você ainda está cumprindo seus deveres, mas não está mais seguindo a mentalidade da cultura de agitação de que o trabalho deve ser sua vida. A realidade é que não é, e seu valor como pessoa não é definido pelo seu trabalho.”

Ou seja, o fenômeno quiet quitting pode ser visto como um movimento que coloca em cheque a forma como o mercado de trabalho foi encarado até então e que vai na contramão de movimentos anteriores como da cultura do “work hard, play harder”– trabalhe muito, se divirta muito. 

Assim, o quite quitting convoca as pessoas a cumprirem o mínimo desejado para que continuem empregadas, sem dar o máximo à empresa e ou superar suas limitações. 

Dessa maneira, o movimento do quiet quitting chama a atenção para algo que poderíamos – sob certo ponto de vista – compreender como óbvio: realizar somente as tarefas que foram combinadas e estão dentro do escopo daquela função. Nada mais. Nada além do acordado. Sem tarefas extras não remuneradas, sem ficar além do horário definido no escritório e sem trabalho aos finais de semana. 

Neste sentido, o quite quitting inverte o modo como enxergamos o trabalho e indica a priorização da vida para além das demandas profissionais. Ou seja, o desejo de estar com a família, de ter momentos de lazer, descanso e de desempenhar outras atividades, para os adeptos do quiet quitting, se sobrepõe às ambições profissionais. O trabalho sai do centro da vida do sujeito e passa a ocupar quase que uma via marginal.

Essa mudança na forma de encarar os mecanismos do trabalho, especialmente por parte dos jovens, pode ser analisada a partir de pesquisas sobre engajamento e desengajamento em relação às questões profissionais. Veja só:

De acordo com o relatório global da norte-americana, Gallup, para 2022, somente 9% dos trabalhadores no Reino Unido estavam engajados ou entusiasmados com seu trabalho, ocupando o 33º lugar entre 38 países europeus. Já a pesquisa da equipe do NHS, realizada em outono de 2021, mostrou que o moral havia caído de 6,1 de 10 para 5,8, e o engajamento da equipe caiu de 7,0 para 6,8. 

A grande demissão: mais um movimento no mundo do trabalho

Diante disso, podemos seguir para o próximo fenômeno, o great resignation – ou grande demissão – que se refere aos milhões de trabalhadores que, voluntariamente, têm deixado seus postos de trabalho nas principais economias do mundo. 

Desse modo, o movimento global é caracterizado pelo desligamento voluntário do emprego e pode ser visto como um chamamento a uma nova forma de encarar a vida profissional, na qual o trabalho deve fazer sentido também para o empregador – e não somente para a empresa – e na qual se busca a preservação do bem-estar mental. 

Segundo um estudo da consultoria PwC, realizado com mais de 52 mil pessoas em 44 países, um em cada cinco entrevistados declarou que pretende trocar de emprego em 2022. Ainda de acordo com o levantamento, esse desejo é mais intenso entre os trabalhadores da geração Z (com idades entre 18 e 25 anos): 27% disseram que querem mudança de ares nos próximos 12 meses.

Por que esses fenômenos no mundo do trabalho têm surgido? 

Por que estamos vivendo essa onda de convocação à mudança? Por que rever as estruturas e movimentá-las? Bem, estudiosos apontam alguns fatores que colaboram – ou colaboraram – para esse chacoalhar no mundo do trabalho. 

Entre eles, claro, está a pandemia de Covid-19, que atravessou a vida de todas as pessoas e fez com que muitas questões, dadas como certas, fossem revistas, revisitadas e ressignificadas, não é mesmo?

Dessa forma, a pandemia também afetou a relação das pessoas com o trabalho. Pesquisadores defendem que ao nos depararmos frente a frente com nossa mortalidade de modo mais incisivo – em razão das muitas incertezas relacionadas à Covid-19, o significado do trabalho se tornou muito mais aparente e questões existenciais passaram a pipocar muito mais: “o que o trabalho deveria significar para mim?” “o que tenho feito da minha vida, além de trabalhar?” “meu esforço para a empresa é recompensado? ou somente a empresa lucra com isso?”

Para o professor de psicologia organizacional, Anthony Klotz, da UCL School of Management, responsável por cunhar o termo great resignation, além da pandemia, existem outras razões capazes de explicar o fenômeno atual:

  1. muitas pessoas que pretendiam mudar de emprego no começo de 2020, precisaram adiar os planos;  
  2. a pandemia também expandiu as perspectivas de organização do trabalho (como as possibilidades de trabalho remoto ou híbrido);
  3. epifanias (ou revelações) da vida profissional acontecem por conta de algum evento que transforma a visão ou os valores das pessoas, e a pandemia contribuiu muito para que isso ocorresse;
  4. mais gente passou a questionar a dedicação à antiga empresa e decidiu utilizar essa energia para investir em um negócio próprio.

Vale ainda destacar que, além desses fatores apontados por Klotz, a demissão voluntária pode estar relacionada a motivos como: a fuga do trabalho excessivo, a fuga do Burnout, de situações de assédio moral e do trabalho sem sentido. 

Assim, é possível ver quais estímulos permeiam os dois grandes fenômenos atuais no mundo do trabalho que convocam a uma verdadeira revisão do espaço – e do significado – ocupado pela atividade profissional dentro da vida das pessoas.

Mas, e no Brasil? Quais as características do quiet quitting e great resignation?

Falando em bom português, a demissão silenciosa e a grande demissão ganham novos contornos em terras tupiniquins. É preciso considerar que as características e as condições de um determinado espaço vão influenciar e até mesmo personalizar fenômenos globais. 

Sendo assim, no Brasil, os movimentos quiet quitting e great resignation podem ser vistos de um ponto de vista de estratificação, já que se tornam movimentos com marcadores sociais importantes.  

Isso porque, lá fora, os fenômenos atuais do trabalho tendem a atingir pessoas de todas as classes sociais, mas, em especial, aquelas que ocupam empregos que tradicionalmente pagam pouco, como lixeiros e faxineiros. São também, em geral, pessoas mais jovens. 

Já no Brasil, os trabalhadores que saem dos empregos voluntariamente têm um nível de escolaridade mais alto, são profissionais diplomados e que, em geral, ocupam cargos com remunerações mais altas.

Os dados levantados pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) mostram esse perfil: 

  • 2,9 milhões foi o número de pedidos de demissão no Brasil entre janeiro e junho e 2022
  • 48,2% é o percentual dos pedidos de demissão que foram feitos por profissionais com ensino superior completo
  • 33% é o percentual dos pedidos de demissão que foram feitos por profissionais com ensino médio completo

Diante dessas informações, convido a uma reflexão importante: quem pode pedir a conta? Quais trabalhadores e trabalhadoras, sob uma perspectiva social e política, têm o privilégio de refletir sobre o lugar do trabalho em suas vidas, em analisar as condições e pedir demissão de forma voluntária? Em um Brasil que peca, profundamente, em políticas públicas e em condições de acesso ao básico para sobrevivência humana, quem pode escolher se demitir? 

Outro aspecto a ser considerado e que envolve as reflexões acima é a crescente taxa de desemprego que temos assistido por aqui. Segundo levantamento da agência de classificação de risco Austin Rating, elaborado a partir das novas projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a economia global, a taxa de desemprego do Brasil deve ficar entre as maiores do mundo em 2022.

No ranking, que inclui as projeções do FMI para um conjunto de 102 países, o Brasil aparece com a 9ª pior estimativa de desemprego no ano (13,7%), bem acima da média global prevista para o ano (7,7%), da taxa dos emergentes (8,7%) e é a 2ª maior entre os membros do G20 – atrás só da África do Sul (35,2%).

Em junho deste ano, a taxa de desemprego no país manteve o recorde de 14,7%, atingindo 14,8 milhões, segundo o IBGE. A taxa e o número de desempregados foram os maiores desde o início da série histórica, iniciada em 2012.

Um dos fatores que colocam o Brasil nessa situação de menos oportunidades de emprego formal é a retração do parque industrial brasileiro, que tornou o país, basicamente, em um país produtor de commodities. Ou seja, o Brasil teve interrompido seu ciclo produtivo expansivo, sua capacidade de industrialização, que se trata de uma das principais estruturas do desenvolvimento de qualquer nação. Sem força produtiva aqui dentro, reduzimos a oferta de trabalho. 

Assim, em um cenário com menos oportunidades de vagas e assombrosos números de pessoas em busca de emprego, o medo de perder as condições mínimas de sobrevivência pode fazer com que a pessoa permaneça no trabalho, ainda que seu desejo seja sair. 

Por fim, o que os fenômenos quiet quitting e great resignation têm a dizer e quais desafios eles colocam? 

Em suma, podemos ver que, embora no Brasil, a escolha por rever o tempo e a energia investidos no trabalho possa ser considerada um privilégio de classe, os fenômenos de quiet quitting e great resignation chegam com o papel de desestabilizadores de um status quo

Neste sentido, podemos olhar através desses fenômenos de quiet quitting e great resignation e enxergá-los como despertadores de consciência no que diz respeito às formas de controle, de poder e de servidão em voga até então. Por outro lado, eles são desafios significativos para as organizações que precisam rever cultura, política e gestão de seus talentos. 

É certo que os movimentos começam a fazer barulho – para brincar com a expressão demissão silenciosa – e a afetar empregados e empresas. Novos caminhos precisam ser construídos, novas saídas precisam ser encontradas para que o encontro entre vida pessoal e trabalho seja um encontro de equilíbrio. 

Além disso, é fundamental olharmos para a promessa liberal de que o trabalho permitiria o acesso ao enriquecimento. Essa promessa foi quebrada pela lógica da precarização das condições de trabalho, dos excessos e pressões, que têm produzido, cada vez mais, incertezas e adoecimento. 

Então, como fechamento de minhas reflexões aqui, vejo que, por meio desses movimentos no mundo do trabalho, estamos vivenciando um levante que clama por limites, pela possibilidade de dizer “não” e por defender desejos, propósitos e territórios, que vão muito além do Google Meet e da cadeira giratória. 

Entendo que, por meio desses movimentos, a Sociedade do Desempenho, descrita pelo filósofo sul-coreano, Byung-Chul Han, começa, ainda que tímida, a despertar, a subverter a ideia de alienação de si e dos excessos, e a compreender que cansaço não é sucesso. 

Por fim, para não me alongar mais, deixo aqui o convite para acompanhar, no próximo artigo, as saídas possíveis e os meios para que trabalhadores, trabalhadoras e empresas possam ajustar as expectativas e aos novos desenhos que surgem no mundo do trabalho. 

Para mais artigos sobre trabalho e relações sociais, acesse meu blog

Até mais! 

 

Referências:

Época Negócios 

Forbes

Isto É Dinheiro

INSPER

The Guardian 

Saúde Abril

Seu Dinheiro 

G1 

UOL

Nexo Jornal 

El País

Discurso da Servidão Voluntária

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