Afinal, para que serve a psicoterapia?

Afinal, para que serve a Psicoterapia?

Márcio Melo Guimarães de Souza

 

Um homem com uma dor

É muito mais elegante

Caminha assim de lado

Com se chegando atrasado

Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor

Como se portasse medalhas

Uma coroa, um milhão de dólares

Ou coisa que os valha

 

Ópios, édens, analgésicos

Não me toquem nesse dor

Ela é tudo o que me sobra

Sofrer vai ser a minha última obra

Paulo Leminski

 

É no momento do encontro que ouvimos o outro e nos ouvimos também. Desses encontros de escuta mútua, vemos nascer questões que nos levam ao principal propósito de uma pergunta: fazer pensar. Assim, em conversa recente com uma ex-aluna, ela compartilhou sua dúvida sobre qual abordagem teórica iria escolher para sua carreira como psicóloga.

 

Dentre suas várias questões, ela enfatizou uma que mais lhe afligia. Há abordagens que oferecem procedimentos e soluções para os problemas dos clientes. Segundo sua visão, no entanto, a fenomenologia é capaz de oferecer um caminho para a introspecção, mas não consegue oferecer soluções.

 

Nem preciso dizer que adorei essa conversa, não é?! Foi desse encontro, dessa troca, que identifiquei o tema para este texto: para que serve a psicoterapia?

 

O recorte veio naturalmente. O questionamento sobre qual seria a função da psicoterapia me é feito com certa frequência por possíveis pacientes. Eu costumo responder à pergunta com muito cuidado para que a resposta não pareça prescritiva, pois eu, realmente, não acredito que seja obrigatório fazer psicoterapia. O que acredito, no entanto, é que a psicoterapia se trata de uma possibilidade para quem quer se conhecer de forma mais aprofundada e encontrar caminhos para lidar com seus afetos e sofrimentos.

 

Mesmo assim, ao navegar pelas redes sociais, sou inundado por materiais produzidos por colegas de profissão que colocam a psicoterapia como receita para combater depressão, pânico, ansiedade e uma infinidade de sofrimentos. Muitas vezes, tais postagens são acompanhadas por dicas ou prescrições passo a passo de como solucionar problemas relacionados ao sofrimento psicológico. 

 

Ao me deparar com postagens dessa natureza, é inevitável me lembrar do Byung-Chul Han. Em seu livro, Sociedade do Cansaço, ele problematiza o excesso de positividade de nossa sociedade. O autor constata que todo sofrimento precisa ser aplacado com alguma fórmula para a felicidade ou ser anestesiado por alguma forma de entretenimento, não existindo, então, espaço para o tédio, o vazio e a frustração.

 

Segundo a análise de Byung-Chul Han, as redes sociais e a mídia impõem um padrão de vida fundado na euforia e na felicidade, qualquer sentimento fora deste padrão deve ser suprimido pelo entretenimento ou corrigido pelas “terapias da positividade”. A busca, para ele, é por bem-estar quase que instantâneo. 

 

A impossibilidade de lidar com o que não é felicidade se materializa no consultório na forma da busca por eficácia. Quem chega ao consultório quer logo saber em quantas sessões seu problema será resolvido ou se a abordagem X é mais eficiente que a abordagem Y para o tipo de sofrimento que vivencia. Junto à pergunta pela eficácia da psicoterapia, vem o desejo de dominar as próprias emoções pois, de acordo com a ciência positivista preponderante em nossa sociedade, tudo aquilo que não é compreendido precisa ser dominado. (POMPEIA, 2011)

 

É certo que cada demanda carrega um sofrimento e há a expectativa pela diminuição desse mesmo sofrimento. Nada mais legítimo. Mas eu apenas questiono o caminho previamente desenhado para se chegar à redução do sofrimento. Como estudioso da fenomenologia, tenho o hábito de dar um passo para trás na tentativa de ter uma compreensão mais ampla dos fenômenos e, ao refletir sobre toda essa demanda por positividade, por fórmulas prontas e domínio das emoções, me veio à mente o verbo solucionar. 

 

Em português, o verbo solucionar tem duas acepções: 1- dar solução a; resolver: solucionar um problema; 2- conseguir decifrar algo extremamente difícil, indecifrável, misterioso; decifrar: solucionar um enigma. A princípio, pode parecer que ambos significados são iguais, mas compreendo que são dois sentidos totalmente diferentes. Acompanhe comigo. 

 

Na primeira acepção, mais abrangente, solucionar um problema pode ser compreendido como suprimir, resolver um problema por meio de sua eliminação. Fazemos isso todos os dias em nossa vida prática. Desligamos um aparelho elétrico para gastar menos luz, cortamos a água de um encanamento para eliminar um vazamento, aplicamos um veneno para eliminar as ervas daninhas de um jardim, etc. Também podemos resolver um problema por meio da adequação, como quando trocamos uma peça do motor de um carro para que ele funcione da maneira esperada. 

 

Então, essa mesma lógica é usada no oferecimento e na busca por bem-estar: nossa relação com a vida passou a ser mediada pela função das coisas. Meditamos para ter mindfulness, comemos bem para manter o colesterol e o triglicérides dentro da faixa adequada, temos um hobbie para aliviar o estresse e nos acalmar e assim por diante. Não raro, escuto que meus passeios de moto – que tanto adoro – são uma “terapia”. No dar e receber, perdemos a relação de espontaneidade com a vida e com as oportunidades que ela nos possibilita. Estamos sempre mais preocupados com os resultados que uma atividade qualquer pode nos proporcionar do que com a própria experiência da atividade em si.  

 

Em minha análise, a psicoterapia compreendida com esse enquadre poderia ser comparada a uma oficina mecânica, já que a busca do paciente está sempre orientada no ato de “consertar” algum sentimento considerado inadequado, desregulado. Mas, além de muito reducionista, essa compreensão da psicoterapia, orientada exclusivamente pelo sintoma, promove a fragmentação do saber psicológico e impede o olhar para o ser humano de forma mais ampla, ignorando o caráter multifacetado e multideterminado de sua existência.

 

A partir da reflexão acima, sobre a primeira acepção do verbo solucionar, sou instigado a fazer duas perguntas: é realmente possível eliminar sentimentos? é possível adequar sentimentos? 

 

Bem, acredito que você que chegou até aqui na leitura deste texto já tenha tentado alguma vez alguma dessas alternativas: suprimir ou adequar um sentimento. E aí, me diga, funcionou? Em minha vivência como psicoterapeuta, observo que esses artifícios, quando funcionam, têm uma validade muito curta, pois, geralmente, quando tentamos suprimir ou adequar sentimentos, o fazemos usando princípios do pensamento lógico. O único – e grande – problema é que as emoções não obedecem à lógica. Parafraseando Nietzsche:

 

Apenas os homens muito ingênuos podem acreditar que a natureza humana pode ser transformada numa natureza puramente lógica; mas, se houvesse graus de aproximação desta meta, o que não se haveria de perder nesse caminho! Mesmo o homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é, de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas.” (2005, p.37)

 

Gostaria de destacar uma passagem do texto acima: “Apenas os homens muito ingênuos podem acreditar que a natureza humana pode ser transformada numa natureza puramente lógica; mas, (…) o que não se haveria de perder nesse caminho!“. Acredito que Nietzsche se refere justamente à riqueza de nossa vivência emocional, que é a principal responsável pela abundância de sentidos que damos à nossa existência e a cada momento dela. É esta infinita diversidade de vivências e significados a grande responsável pela nossa mais absoluta singularidade. 

 

Um dos fenômenos que mais me encanta como psicólogo é, justamente, como nosso processo de individuação se dá em meio a uma coletividade. Somos membros de uma sociedade, compartilhamos o mesmo caldo cultural daqueles que estão à nossa volta e, ainda assim, cada ser humano significa e percebe sua vivência no mundo de forma única. Tentar impor a lógica formal à nossa vida subjetiva seria uma violência contra toda esta. 

 

Por isso, prefiro trabalhar com a segunda acepção do verbo solucionar: “conseguir decifrar algo extremamente difícil, indecifrável, misterioso; decifrar: solucionar um enigma“, pois os sentimentos funcionam a partir de uma lógica muito própria e não atendem aos princípios do pensamento hipotético-dedutivo, ao qual estamos acostumados. Na tentativa de  compreender os sentimentos, é necessário respeitar seu modo de constituição e de construção dos seus sentidos. 

 

A partir dessa compreensão, não faz sentido algum propor fórmulas ou falar em argumentos lógicos na tentativa de fazer com que o paciente modifique os sentimentos que lhe causam sofrimento. Além de prometer o impossível, o terapeuta corre o risco de assumir para si uma tarefa que é do paciente: compreender os sentidos presentes em seus sofrimentos e sentimentos. 

 

Em contrapartida, Pompeia (2011), propõe que um psicoterapeuta, fundamentado na fenomenologia “pode, honestamente, oferecer ao paciente é a parceria na procura da verdade de sua história, da qual fazem parte o seu momento atual, o já vivido e o que está por vir, pois esta história está sempre em aberto” (p.131).

 

A expressão parceria reflete muito bem a postura de um psicoterapeuta em uma abordagem fenomenológica, pois não cabe ao terapeuta convencer o paciente de um certa lógica ou, ainda, tentar promover a adequação de seus sentimentos. A parceria surge de forma natural, pois paciente e terapeuta unem-se na jornada de autoconhecimento iniciada pelo primeiro.

 

O papel do terapeuta é de facilitar a postura de reflexividade necessária para a tomada de consciência do paciente a respeito de sua história, dos sentidos nela existentes e dos sentimentos daí derivados. O terapeuta também é capaz de ajudar o paciente a perceber que escolhas fazem mais sentido a partir das compreensões por ele próprio conquistadas. 

 

E, para que seja possível o solucionar que visa decifrar algo extremamente difícil, é necessário quietude. Byung-Chul Han recorre à noção de vida contemplativa, presente no pensamento de Nietzsche, como caminho para escapar do frenesí de estímulos em que estamos inseridos. A vida contemplativa como descrita exige “habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar-aproximar-de-si, isto é, capacitar o olho a uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento” (p.51). É justamente o exercício de não reagir imediatamente a um estímulo que nos proporciona o vazio necessário para o desenvolvimento da reflexividade.  

 

Heidegger (1959) se refere à reflexividade como pensamento que medita. Em suas palavras: “O pensamento que medita exige, por vezes, um grande esforço. Requer um treino demorado. Carece de cuidados ainda mais delicados do que qualquer outro verdadeiro ofício. Contudo, tal como o lavrador, também tem de saber aguardar que a semente desponte e amadureça.” (p.14). O esforço referido é o de nos afastarmos dos julgamentos, das representações, das crenças que temos a respeito daquilo sobre o que meditamos. Este esforço também se refere à tentativa de afastamento do pensamento lógico com a intenção de perceber o sentido próprio dos sentimentos. Também há o esforço de respeitar o próprio tempo do pensamento e não tentar antecipar conclusões e compreensões. 

 

Na prática, o que acontece quando temos um sentimento que não compreendemos, que nos causa incômodo ou sofrimento? O mais natural é buscarmos uma referência em situações passadas, mas nem sempre isso dá certo, pois é possível que esta seja uma situação nova e nossa referência passada não nos possibilite uma boa compreensão no agora. Quando vamos mais além, podemos ainda pesquisar a respeito desse sentimento.

 

Neste caso, pode ser que encontremos tanto material acadêmico quanto relato de pessoas que viveram sentimentos parecidos. Mas, mesmo que todos esses relatos sejam verdadeiros, nenhum deles diz respeito à sua vivência especificamente. Muitas vezes, com todo esse material que vamos juntando, corremos o risco de nos afastarmos da compreensão do sentimento em questão ao invés de compreendê-lo. Conseguem perceber a dificuldade sobre a qual Heidegger nos alerta?

 

Contudo, o próprio Heidegger lembra que “qualquer pessoa pode seguir os caminhos da reflexão à sua maneira e dentro dos seus limites” (p.14). É desta forma que o psicoterapeuta de base fenomenológica busca auxiliar o paciente a meditar sobre seus sentimentos e sofrimentos, afastando-se de referenciais externos e procurando em suas próprias vivências os sentidos daquilo que sente.

 

Quanto mais esse olhar para dentro de si for desenvolvido, melhor o paciente poderá compreender que seus sentimentos e vivências formam um tecido composto por diferentes fios de sentido. Desta forma, quando estiver pronto, poderá compreender a si mesmo ao invés de reproduzir aquilo que o mundo – o externo – diz a respeito de suas vivências. 

 

Não se assuste, mas o caminho é longo, tortuoso e desafiador. Mas é também libertador. Como existencialista, não consigo pensar em outra possibilidade que seja mais recompensadora, uma vez que ela nos permite um afastamento do ruído das opiniões, das lógicas estabelecidas e nos aproxima de uma apropriação de nossa própria existência. Reconhecer que há uma jornada e que a solução não é pronta, muito menos única e absoluta, é um importante exercício de conhecimento e – claro – de conhecimento de si, como bem colocou Lao-Tsé.  

 

“Quem conhece a sua ignorância revela a mais profunda sapiência. Quem ignora a sua ignorância vive na mais profunda ilusão.”  – Lao-Tsé

 

Voltando à pergunta inicial: para que serve a psicoterapia? Do meu ponto de vista, a psicoterapia serve para criar um espaço, gerar uma pausa das demandas do mundo, e propiciar as condições necessárias para uma meditação sobre si mesmo, algo tão difícil de se conseguir diante dos chamados incessantes do cotidiano. 

 

Por fim, na fenomenologia, evitamos estabelecer relações funcionalistas com a psicoterapia, assumindo objetivos fechados para um processo que, como aqui foi descrito, é pessoal e artesanal. Entretanto, deixo aqui alguns apontamentos da professora Ana Feijoó (2015), acerca de mudanças observadas em pacientes que fizeram psicoterapia dentro desta proposta:

 

 

    1. “Romper com ilusões”, pois frequentemente temos uma compreensão cristalizada e, em certa medida, ilusória dos problemas que vivemos. Com a abertura do espaço para a reflexividade, podemos romper com essas ilusões e nos aproximarmos de uma compreensão mais fidedigna das situações que vivemos;
    2. “Deixar transparecer que a vida não é lugar de total realização, que a vida comporta frustrações, ou seja, projetos não realizados, pois a existência também possui uma dimensão negativa representada por sua indeterminação e incompletude. Refere-se à compreensão de que positividade e negatividade coexistem e ambas são importantes na compreensão da existência. 
    3. “Questionar verdades estabelecidas”, refere-se à possibilidade de vivenciar a angústia como parte da existência e não como patologia. O esvaziamento dos sentidos resulta na angústia, condição necessária para o exercício da liberdade e para a ressignificação de vivências.

 

  • Abrir o caráter de poder ser de toda e qualquer existência: somos seres inacabados e são nossas possibilidades que nos garantem um direcionamento para o futuro. Ao abrir o caráter de poder ser, o paciente tem a oportunidade, não apenas de analisar os limitadores externos para a realização de seus projetos, como também de compreender em que medida ele mesmo atua de forma a dificultar ou impossibilitar a realização desses mesmos projetos.

 

 

Para encerrar, gostaria de resgatar o papel dos encontros que citei logo no início. Foi a partir de uma conversa – de um encontro com o outro – que escrevi essas linhas e trouxe elementos na tentativa de responder a uma questão. Perguntas não devem ser encerradas, tão pouco os encontros que nos afetam e nos levam a refletir. Reflexão, esta mesma, também proposta pela psicoterapia. 

 

Até o próximo! 

 

REFERÊNCIAS:

  • FEIJOÓ, Ana Maria Calvo de. Situações Clínicas I: análise fenomenológica de discursos clínicos. Rio de Janeiro. IFEN, 2015
  • HAN Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
  • HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1959.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano.  São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
  • POMPEIA, João Augusto. Dois Nascimentos do Homem. Rio de Janeiro: Via Verita:2011.
  • https://www.dicio.com.br/solucionar/

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