Projeto de vida em tempos de incerteza

Projeto de vida em tempos de incerteza

 

nunca sei ao certo

se sou um menino de dúvidas

ou homem de fé

certezas o vento leva

só dúvidas ficam de pé.

– Paulo Leminski

Para ser sincero, começo este artigo com as dúvidas que ficaram de pé e que me ajudaram – depois de criar consciência sobre elas – a escrevê-lo. Acho que a melhor forma de começar confessando a minha dificuldade em colocar aqui as primeiras palavras. Já estou atrasado há dias com a entrega deste texto, o que é intrigante, pois projeto de vida é um tema que me é muito caro, que gosto de estudar, discutir, além de ser o tema central em grande parte dos atendimentos de carreira que realizo. 

 

Então, ao refletir um pouco sobre a dificuldade desse início, me deparei com alguns questionamentos que estavam emperrando a escrita. Sei da responsabilidade de publicar um texto e também não sou a favor de disparar fórmulas de “como ter sucesso e ser feliz para sempre”, pois sei que existem pessoas ansiosas para encontrar estas respostas. 

 

No entanto, o problema é que elas não existem. Dessa forma, meu impasse na escrita deste texto estava, justamente, nas seguintes questões: como não carregar na tinta da desesperança ou do otimismo? como, ao invés de um “manual contra o fracasso”, possibilitar algumas reflexões importantes para pensar um projeto de vida em um contexto tão instável como o que descrevi em meu último artigo? 

 

Te convido a seguir a leitura e a refletir comigo sobre projeto de vida e as incertezas que nos atravessam e nos libertam. Vamos lá?

 

Tudo sob controle mesmo?

 

Tanto em minha atuação como orientador de carreiras quanto como psicoterapeuta, é comum que eu me depare com clientes que estão diante de algum impasse e querem ter certeza sobre qual a escolha correta a se fazer, sem deixar margem para falha. O problema é que toda esta certeza é uma tarefa impossível, pois independente de quanto planejamento tenha sido feito, são muitas as variáveis fora de nosso controle que interferem no sucesso ou no fracasso de nossos projetos.

Na fenomenologia de Heidegger, a noção de facticidade cumpre um papel essencial em nossa experiência existencial. Na compreensão deste autor, somos lançados em um mundo que não escolhemos, não controlamos e ainda assim somos os únicos responsáveis por nossa existência. Acredito que este é um elemento central no impasse que acabei de citar acima: queremos certeza e segurança em um mundo que não está sob o nosso controle e que a cada momento reafirma sua instabilidade. 

 

Trocando em miúdos, o mundo nos oferece um cenário no qual se darão nossas escolhas. Este cenário é determinado a partir das condições macroeconômicas, macropolíticas e sociais do tempo histórico em que vivemos. As tendências no mundo do trabalho, as mudanças nas formas como nos relacionamos com outras pessoas, aquilo que entendemos como fracasso ou sucesso e até mesmo as mudanças de valores sociais fazem parte desse contexto. Estas são algumas das variáveis que não controlamos, no entanto, é também a partir delas que realizamos nossas escolhas e planejamos nosso futuro. 

 

A inconstância do mundo se choca com aquilo que compreendemos como planejamento de carreira e projeto de vida. Vivemos em uma sociedade que valoriza a capacidade de alcançarmos objetivos e usa este critério como régua para definir sucesso e fracasso. Em orientação de carreiras, existe um exercício chamado Roadmap, no qual é definido um objetivo final e os objetivos parciais necessários para se chegar ao objetivo desejado. O que me deixa intrigado é que, geralmente, esse mapa é representado por uma linha reta, sendo que, na maioria das vezes, serão necessários ajustes durante o percurso. Ajustes que, claramente, vão exigir um desvio aqui e outro ali para se chegar ao mesmo destino.

 

Queremos certezas e isso é tudo que o mundo não nos apresenta. Desejamos um solo firme em uma modernidade que já se liquefez como analisou Bauman. Esta é a nossa grande tragédia e não é à toa que encontramos tantas pessoas vendendo soluções infalíveis para todo tipo de inseguranças que podemos viver. Essas fórmulas me preocupam muito, pois quem está sofrendo diante da facticidade apresentada pelo mundo tende a acreditar na promessa de que seu sofrimento deixará de existir. 

 

Já deu para perceber que não vou apresentar mais uma dessas fórmulas, até porque não acredito nelas. Minha contribuição com este texto será a de compartilhar algumas reflexões de como eu costumo articular o pensamento fenomenológico com o planejamento de carreiras para que a formulação do projeto de vida contemple as incessantes mudanças apresentadas pelo mundo. 

 

Facticidade, os outros e condição inautêntica

 

Não nos damos conta do quanto nossa relação com o mundo é radicalmente parte de quem nós somos. Existimos em um “mundo concreto, literal, efetivo, do dia-a-dia. Ser humano é estar imerso, implantado, enraizado na terra, na materialidade cotidiana do mundo. Uma filosofia que abstrai, que procura elevar-se acima da cotidianidade do cotidiano, é vazia.” (STEINER, 1990:74) 

 

Só que não é desta forma que nos percebemos na modernidade, pois ainda somos herdeiros dos pensamentos platônico e cartesiano. Mas como assim? Explico: do pensamento platônico, herdamos a divisão entre mundo das idéias e mundo material, e de Descartes, herdamos a noção de que o pensamento é o fator definidor da existência humana. Estas duas noções filosóficas estão tão enraizadas em nossa cultura que nem percebemos o quanto avaliamos nossa realidade a partir de idealizações de um mundo perfeito. 

 

Seria fácil ultrapassar essas perspectivas se esse idealismo não estivesse tão arraigado em nossa cultura. Somos bombardeados o tempo inteiro com modelos que nos indicam como pensar, sentir e agir. Por isso, falas como “não posso me sentir assim”, “deveria ser mais otimista”, “sei que deveria ter uma atitude mais proativa” são tão comuns tanto em atendimentos psicoterapêuticos quanto de carreiras.

 

Estar no mundo é também estar com os demais. Além disso, dos relacionamentos que mantemos com os outros também recebemos indicações de quais características deveríamos ter. Dentro da família, na escola, no trabalho, os amigos, todos possuem alguma opinião a respeito de como seríamos uma pessoa melhor e como conseguiríamos atingir nossos objetivos com mais facilidade. 

 

Como consequência de tantas demandas, corremos o risco de não pararmos para refletir a respeito de quem nós somos, de nossos valores, de como sentimos e pensamos os desafios que a vida nos impõe. Não esperamos uma resposta de dentro para fora, pois este é um processo que demanda reflexão e contemplação e, como não paramos para fazer estes exercícios, acabamos nos apegando a valores, objetivos e formas de compreender a existência que nem sempre respeitam quem somos. Isso é o que chamamos de inautenticidade. 

 

“Lançado para o meio de outros, atualizando e realizando o nosso próprio Dasein como um ser-uns-com-os-outros (o pesado uso dos hífens por Heidegger reflete a intrincada densidade dos fatos), não chegamos a ser nós próprios.(…) Num sentido perfeitamente literal, concreto, não somos nós próprios, o que corresponde dizer que o nosso ser se torna fictício” (STEINER, 1990:81) 

 

Enquanto vivemos em condição de inautenticidade corremos o risco de sempre perseguir objetivos e, ao conquistá-los, não sentir que realizamos algo ou que os objetivos alcançados não nos preencheram de alguma maneira, gerando uma busca incessante e infrutífera por realização. Infrutífera, pois perseguimos objetivos que assumimos como nossos mas que, na verdade, fazem parte de compreensões massificadas do mundo, dos outros e, sobretudo, de nós mesmos.

 

Condição autêntica e cuidado

 

Pronto, agora é só ser autêntico que tudo se resolve. Simples assim. Seria ótimo se fosse tão fácil quanto pregam os discursos da positividade sustentados em uma compreensão idealizada do mundo e da existência humana.

 

Cabe aqui, acredito, um esclarecimento importante sobre a noção de autenticidade, pois acreditamos ser autêntico tudo aquilo que habita nosso pensamento e que a autenticidade é um estado permanente. 

 

Mas, vejam bem, não podemos esquecer que somos seres inseridos na materialidade do mundo que nos cerca e que, sendo assim, corremos o risco de confundir aquilo que o mundo nos apresenta com aquilo que nos é mais próprio. 

 

“Dasein não perde a si mesmo como se perde um guarda chuva. Ele o perde ao cair na ocupação. Ele cai em e é absorvido pelo mundo, de tal forma que esquece de si mesmo como um ente autônomo e interpreta a si mesmo em função de suas preocupações correntes. (…) Em casos extremos, ele compreende a si mesmo como um ser-simplesmente-dado, com o qual só se pode lidar por meio de suas preocupações.” (INWOOD, 2002:11-12)

 

Portanto, para chegarmos àquilo que é realmente nosso, precisamos analisar nossos pensamentos e sentimentos de forma que possamos, aos poucos, perceber quais deles estão sendo apenas absorvidos dos outros e do mundo que nos cerca e quais deles nos são realmente próprios. Este exercício reflexivo nos possibilita avaliar quais pensamentos e sentimentos ainda fazem sentido e, para aqueles que mantêm seu sentido, elaborar nossa própria versão deles.

 

Vale lembrar que Heidegger, em Ser e Tempo, alerta para o fato de que autenticidade acontece em momentos da existência nos quais estamos abertos para uma compreensão de nós mesmos e momentaneamente afastados dos ruídos do cotidiano. Não podemos esperar que a autenticidade seja um estado permanente, pois somos permanentemente solicitados pelas demandas do mundo. Mas é, justamente, nesses momentos de autenticidade que podemos ter uma compreensão mais clara daquilo que nos é mais próprio e, então, pensar projetos de vida mais coerentes com quem somos. 

 

Quando conseguimos chegar a uma compreensão mais ampliada de nós mesmos, passamos a vislumbrar um horizonte mais autêntico para o futuro e podemos desenvolver um sentimento ora de obrigação, ora de urgência em relação a esse horizonte. Passamos a sentir a necessidade de cuidar desse futuro e daquilo que nos é mais próprio. Isso é o que Heidegger chama de cuidado. Neste sentido, passamos a cuidar de nossa existência. 

 

Enfim, e as incertezas?

 

Sinto informar que não é aqui que você encontrará os 5 passos para sempre ter certeza sobre o futuro. Como cita a poesia de Leminski na epígrafe deste texto, “certezas o vento leva, só dúvidas ficam de pé”. 

 

Desejar um mundo repleto de certezas é reflexo de uma postura idealista diante da vida. Então, se esse é seu caso, vale a pena tentar compreender o mundo tal como ele se apresenta. Basta revisar brevemente a história da humanidade para perceber que as mudanças estão cada vez mais aceleradas. Procurar por certezas definitivamente não é o que vai te ajudar.

 

Meu convite é para abraçarmos as incertezas. Isso não quer dizer que vamos jogar tudo para o alto, pelo contrário. Ao assumirmos que o cenário que usamos para fazer nossos planejamentos pode mudar, seria inconsistente achar que a execução deste planejamento passaria ilesa. Temos que adaptar aquilo que planejamos à realidade que se apresenta diante de nós. Isso significa, inclusive, ter margem para abortar ou mudar completamente nosso planejamento inicial. 

 

Pode parecer impossível, mas não é. Na verdade, pode ser bem libertador, pois quando pensamos nossos projetos de vida a partir daquilo que percebemos como verdadeiramente nosso, sabemos que o que mais importa não são os detalhes daquilo que planejamos e sim aquele horizonte futuro que almejamos alcançar. 

Espero ter colaborado deixando livres as dúvidas em pé.

 

Até o próximo!

 

Referências:

INWOOD, M. Dicionário Heidegger.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002

STEINER, G. Heidegger. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. edição bilingue, Tradução de Fausto Castilho. Petrópolis: Vozes. 2012.

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