Como fica o projeto de vida diante da crise econômica, do desemprego e da precarização das condições de trabalho?

Como fica o projeto de vida diante da crise econômica, do desemprego e da precarização das condições de trabalho?

Como orientador de carreiras, venho observando algumas mudanças tanto no contexto macro-sócio-econômico quanto na percepção das pessoas a respeito das possibilidades reais de efetivar uma transição de carreiras em meio a um cenário tão incerto. A questão que surge é: é possível tornar real meu projeto de vida? Ele ainda é factível no contexto atual? Para refletir sobre o assunto, preparei este texto. Acompanhe a leitura.

Desemprego e precarização do trabalho

Nos dois últimos anos, a pandemia da COVID-19, além de estabelecer uma crise sanitária sem precedentes na história recente, serviu de palco para acelerar mudanças no campo produtivo que vêm tornando o trabalho ainda mais instável e precário. Segundo o IBGE, no quarto trimestre de 2019, 11% da população economicamente ativa encontrava-se em condição de desemprego, no segundo trimestre de 2021, este número passou para 14,1%, conforme gráfico abaixo.

Fonte: IBGE

Infelizmente, o alto índice de desemprego não é a única variável preocupante. Podemos destacar ainda dois outros fatores que muito contribuíram para a precarização das condições de vida dos trabalhadores. 

Um deles é que, como resposta à pandemia, o Congresso Nacional aprovou medidas que facilitam a redução de jornada de trabalho, redução de salários e flexibilização e suspensão das jornadas de trabalho, comprometendo seriamente a renda daqueles que permaneceram empregados. Outro fator que merece destaque é o aumento da inflação com IPCA acumulado de 10,67% em 12 meses. Este índice foi alavancado pelos aumentos no preço dos combustíveis (73% para a gasolina e 65% para o diesel), energia elétrica (25%) e dos alimentos (24,84%, sendo que alguns itens como arroz e feijão chegaram a ter aumentos de 56% e 72%, respectivamente). 

Como resultado desta conjuntura, 84,9 milhões de pessoas enfrentam fome ou insegurança alimentar e assistimos notícias de famílias disputando ossos em açougues ou até mesmo em locais de descarte

Como dito anteriormente, este quadro desolador é apenas agravado pela pandemia e, embora sua formação dependa de um conjunto bastante amplo de variáveis, no que tange ao trabalho, sua origem é determinada por mudanças estruturais no campo produtivo que afetam, diretamente, a oferta de empregos e a geração de renda do trabalhador. 

Uberização e sua ampliação para cargos de gestão 

Em um artigo anterior, abordei a questão da uberização e da indústria 4.0 relacionando-as à cobrança por produtividade. Agora mudo o recorte para discutir como mudanças na própria gestão do trabalho são responsáveis pelos processos de precarização, cuja aceleração assistimos desde o início da pandemia. 

Segundo Antunes, trata-se de “uma complexa engrenagem econômica que não possui limites para sua expansão (pois seu foco é sempre a produção de mais capital), sua resultante é uma acentuada destrutividade” (p.09).

Mas que destrutividade é esta apontada pelo autor? Trata-se, justamente, dos novos processos de gestão da produção que são chamados de Indústria 4.0. A chamada “nova revolução industrial” possui grande ênfase em processos de automação controlados por sistemas de inteligência artificial. O objetivo desses processos é a redução radical dos custos de produção, visando maior lucratividade.

Na indústria 3.0, a automação tinha como foco as tarefas manuais e o trabalho braçal, sem chegar a alcançar a gestão dos processos produtivos. Desta forma, cargos de gestão continuavam valorizados. 

Contudo, com a inteligência artificial, a própria gestão passa a ser totalmente – ou em parte – feita através de sistemas informatizados. Assim, a título de redução de custos, retira-se mais uma camada de postos de trabalho, restando a estes trabalhadores funções cada vez mais operacionais, com cada vez menos segurança e direitos associados ao trabalho. 

O termo uberização do trabalho passou a ser usado para se referir a diversos tipos de trabalhos geridos por aplicativos como o próprio Uber, além de iFood, Rappi, entre outros, nos quais os trabalhadores são responsáveis por todos os custos de sua atividade produtiva e são remunerados de acordo com demanda e remunerações definidas pelos aplicativos. 

Mas essa lógica não se restringe mais apenas à aqueles que trabalham nestas plataformas, pois a lógica da uberização passa a ser extrapolada para os mais diversos campos de atuação. 

“com a Indústria 4.0 teremos uma nova fase da hegemonia informacional-digital, sob o comando do capital financeiro, na qual celulares, tablets, smartphones e assemelhados cada vez mais se converterão em importantes instrumentos de controle, supervisão e comando nesta nova etapa da ciberindústria do século XXI.” – Antunes, 2020, p.15

Um dos aspectos perversos dessa lógica é que tais mudanças são “vendidas” como vantajosas aos trabalhadores que seriam vistos como empreendedores e independentes, sem as amarras de um empregador. Eles poderiam, assim, construir patrimônio e atingir altas remunerações. Na prática, no entanto, o que esses trabalhadores vivenciam é a falta de seguridade e a necessidade de enfrentar longas jornadas de trabalho para obter uma renda cada vez menor e insuficiente para atender suas necessidades.

“Nestes tempos de crise estrutural e destruição, a melhor imagem dessa formação societal é a de uma totalidade completamente deformada. No topo, o capital financeiro, que concebe o trabalho estritamente como “custo”. Como o avanço informacional-digital é um relógio que não para de rodar, sua destrutividade se intensifica a cada momento, tornando a força de trabalho global cada vez mais descartável e supérflua.”  – Antunes, 2020, p.15

Em meu trabalho como orientador de carreiras, minha clientela não é composta por trabalhadores de aplicativos e, mesmo assim, é perceptível o impacto desta lógica em seus trabalhos. Existem o aumento frequente da demanda de trabalho e o medo de serem dispensados caso não consigam atender a toda demanda que chega. Consequentemente, o número de horas trabalhadas e a crescente dificuldade em estabelecer uma linha entre vida pessoal e profissional fazem com que o trabalho ocupe praticamente todos os momentos possíveis em suas existências. 

A lógica do trabalho em excesso se irradia não apenas para as classes menos favorecidas, mas também para trabalhadores que ocupam altos cargos, desfrutam de boa remuneração e benefícios previstos no contrato de trabalho. A consciência, mesmo que sutil, da instabilidade do contrato de trabalho faz com que o medo de perder o emprego, de não poder manter seu padrão de vida, de prover para si e para sua família paire no ar como uma espada sobre a cabeça desses trabalhadores.

Podemos aqui falar de uma ideologia que traduz a exploração do trabalho em um discurso meritocrático, no qual o esforço e a dedicação serão os únicos determinantes do sucesso ou do fracasso. Ao individualizar o desemprego, as profundas raízes de um fenômeno tipicamente social são escondidas, fazendo com que a dominação passe despercebida e seja até desejada. 

“Indubitavelmente, quem perdeu o emprego, quem não consegue empregar-se ou reempregar-se e passa pelo processo de dessocialização progressivo, sofre. É sabido que esse processo leva à doença mental ou física, pois ataca os alicerces da identidade. Hoje, todos partilham um sentimento de medo – por si, pelos próximos, pelos amigos ou filhos – diante da ameaça da exclusão.” – Dejours, 1999, p.19

Com frequência, pessoas que estão expostas a diferentes dimensões da precarização do trabalho, que sentem-se inseguras em perderem seus empregos ou de não conseguirem renda suficiente para sobreviver, atribuem apenas a si mesmas a responsabilidade pelas dificuldades que enfrentam. São assombradas pelo medo da incompetência, sentindo-se impostoras em seus próprios afazeres e, diante da falta de reconhecimento, resta o sofrimento.

Sofrimento x projeto de vida factível 

No entanto, na impossibilidade de manifestar ou mesmo de vivenciar o sofrimento, muitas vezes recorrem à lógica denunciada por Byung-Chul Han de combater a negatividade com o excesso de positividade. Neste sentido, a literatura de autoajuda de carreiras está repleta de autores que prometem fórmulas infalíveis para desenvolver mais disciplina, foco, motivação, gratidão, etc. 

Uma característica comum a esta literatura, além da positividade exagerada, é a compreensão de que todo e qualquer problema profissional pode ser superado pelo indivíduo que molda a si mesmo a fim de se tornar mais “vendável”. É a aplicação da lógica de mercado à vida das pessoas. 

O que me preocupa é justamente o fato de que existe um conjunto de variáveis macroeconômicas e sociais responsáveis pelo fenômeno do desemprego e que debitar essa conta unicamente nos indivíduos, além de esconder as raízes sociais do problema, estimula o sentimento de incompetência.

Em minha dissertação de mestrado, discuti a relação entre projeto de vida e saúde mental de adolescentes. Um dado bastante interessante que surgiu como resultado é que o projeto de vida pode ser tanto um fator de proteção, quanto um fator de risco para o desenvolvimento de saúde mental. 

E a variável fundamental para definir se um projeto de vida poderá promover saúde ou doença é justamente sua factibilidade. Projetos de vida compreendidos como alcançáveis, com objetivos possíveis de serem atingidos, permitem o desenvolvimento do sentimento de comprometimento com sua realização. Já projetos de vida compreendidos como inalcançáveis tendem a gerar sofrimento e resignação. 

Por isso, toda e qualquer transição de carreira deve levar em consideração, tanto as variáveis sócio-econômicas quanto as variáveis pessoais para que seja possível avaliar a factibilidade dessa transição. Em alguns casos, ela será a possibilidade de encontrar um trabalho menos precário, mas em outros, poderá acentuar a precarização já vivida.

É dever ético do orientador de carreiras auxiliar seu orientando a pesquisar e compreender as variáveis sócio-econômicas, seus desejos e aspirações, bem como definir estratégias de enfrentamento a seus medos e inseguranças. Acredito ser esse o caminho mais responsável para uma transição profissional factível e promotora de saúde psicológica. 

Pensar, refletir e traçar caminhos possíveis para mudanças saudáveis. 

Espero que este artigo possa ter colaborado de alguma forma. 

Até o próximo! 

 

Fontes:

IBGE

Economia IG

CNN Brasil 

Isto é Dinheiro

G1

Economia IG

Hora do Povo

UOL

Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado

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