Psicoterapia no masculino: para além do gênero, a subjetividade como ponto de partida

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Em meu último artigo por aqui, abordei algumas barreiras iniciais enfrentadas por homens que buscam pela psicoterapia, dentre elas: a dificuldade de falar de si, o olhar utilitarista sobre a psicoterapia e o medo de que a psicoterapia vá mudar sua essência. Para quem não leu, fica o convite para visitar o texto anterior. 

Neste texto, pretendo abordar alguns movimentos comuns esperados para aqueles homens que já venceram a barreira inicial de procurar a psicoterapia e encontram-se engajados em seus processos psicoterápicos. A inspiração para este texto vem de uma articulação entre minha experiência clínica e um capítulo de Carl Rogers chamado “Ser o que realmente se é: os objetivos pessoais vistos por um terapeuta”, de seu livro, “Tornar-se Pessoa”. Vamos lá?


Por detrás das fachadas


Para começar nossa conversa, não há outro modo, precisamos remontar ao início, à infância. Desde pequenos, nós, homens, somos ensinados a como devemos nos portar: não podemos demonstrar fraqueza, não podemos levar desaforos para casa, temos que sair “por cima” de qualquer desafio. Somos criados como se estivéssemos sendo preparados para uma guerra. 

Desse modo, não é à toa que o tema da masculinidade seja carregado de tantos estigmas. Como pessoas do sexo masculino, precisamos atender às expectativas sociais para que possamos ser considerados suficientemente homens.

O desfecho disso é que nos afastamos de nossas próprias necessidades e construímos fachadas que usamos para esconder aquilo que realmente sentimos e pensamos. Na maioria das vezes, esse processo é tão severo que simplesmente perdemos contato com essa dimensão mais íntima de nossos sentimentos. 

Sendo assim, por meio da psicoterapia e como resultado do processo terapêutico, os pacientes começam a perceber como estas fachadas oprimem e, então, começam a sentir necessidade de se afastar delas. Ao invés de buscar segurança nas obrigações do homem moldado pela tradição cultural, eles começam a buscar a própria compreensão de seus valores, de seus relacionamentos e passam a localizar sua vivência da masculinidade em sua própria vivência, de forma singular e íntima.


Para além do que os outros esperam


Em seu texto, Rogers menciona as fachadas e, na minha compreensão, essas fachadas comportam uma grande quantidade de expectativas presentes na sociedade a respeito dos diferentes papéis sociais. No caso dos homens, há o imperativo socialmente imposto de se afastar de qualquer característica que seja considerada como feminina. Dialogar, entrar em contato com seus sentimentos e, eventualmente, conversar com alguém sobre eles é tido como sinal de fraqueza.

Além disso, existem expectativas sobre o ideal de masculinidade impostos histórica e culturalmente. O homem precisa ser forte, conter suas emoções, não ceder diante de pressões, ser conquistador, ser o provedor para sua família. Estas são apenas algumas das expectativas impostas e a pressão para cumpri-las pode se manifestar desde as formas mais sutis até outras bem explícitas e duras. E não há contexto social que esteja completamente livre delas. 

Por isso, a psicoterapia se torna tão importante, pois nela possibilitamos o espaço seguro e necessário para olhar criticamente para essas exigências sociais e perceber o quanto elas não atendem às nossas próprias necessidades. À medida que o paciente consegue se afastar das fachadas, o próximo passo é o de, gradualmente, começar a não dar mais importância a essas exigências sociais que não fazem sentido para ele e a se regular a partir de seus próprios critérios.


Para a direção de si


Então, você pode se perguntar: qual é o benefício de se fazer psicoterapia? Nas palavras de Rogers: 

  • Em primeiro lugar, o paciente encaminha-se para a autonomia. Quer isto dizer que ele começa gradualmente a optar por objetivos que pretende atingir.

  • Torna-se responsável por si mesmo. Decide das atividades e dos comportamentos que significam alguma coisa para si e dos que não significam nada.

Por muitos anos, usei o texto de Rogers em uma disciplina que ministrava na universidade. Nessas situações, era frequente que algum aluno retrucasse à apresentação destes objetivos dizendo: “Professor, eu sou pai de família, trabalho, tomo minhas próprias decisões e pago o preço por elas. Como assim eu não sou autônomo e responsável?”.

Geralmente, minha resposta ia na direção de diferenciar autonomia e responsabilidade social da autonomia e responsabilidade psicológica. Evidentemente, se uma pessoa é legalmente considerada adulta, ela é considerada tanto autônoma quanto responsável. Mas podemos afirmar que essa pessoa também é autônoma e responsável psicologicamente?

Quando somos privados em nosso desenvolvimento de entrar em contato com nossas necessidades, suprimindo-as com exigências externas, com a necessidade de nos sentirmos aceitos, de fazermos parte de um grupo, aquilo que reconhecemos como autonomia é, na verdade, a internalização deste conjunto de demandas que passamos a reconhecer como nossos. 

Dessa forma, no processo psicoterápico, ao fazer os dois movimentos citados anteriormente (abandonar as próprias fachadas e as expectativas dos outros), o paciente cria o espaço para um contato mais intenso e mais genuíno com seu mundo interno, com seus valores, suas motivações e seus sentimentos. Acredito que esta seja uma condição necessária para falarmos de autonomia psicológica, pois o paciente deixa de agir a partir de expectativas externas e passa a guiar-se a partir do contato com suas próprias necessidades e desejos. 

Ao contrário do que acredita, esse não é um processo egoísta, pois segundo Rogers: “A liberdade de se ser a própria pessoa é uma liberdade cheia de responsabilidade”. Esta responsabilidade vem de nos reconhecermos como autores de nossas escolhas e, também, da empatia gerada pelo processo de reconhecimento de si. À medida que mergulhamos em nosso mundo interno, aumentamos nossas chances de reconhecer como genuínas as necessidades internas daqueles que nos cercam.


Para a realidade do processo


“Os pacientes parecem encaminhar-se mais abertamente para uma realidade fluida, em processo e em mudança. Não ficam perturbados ao descobrir que não são os mesmos em cada dia que passa, que não sentem sempre os mesmos sentimentos em relação a uma dada experiência ou a uma dada pessoa, que nem sempre são consequentes.” 

(Rogers)

Enquanto estamos acuados, tentando atender às expectativas externas, a rigidez pode nos trazer a sensação de estabilidade. Isso aparece em falas como “sempre fui assim, não é agora que vou mudar”. A segurança vem do fato de nos conformarmos a um determinado padrão que internalizamos como sendo nosso. Neste caso, mudanças frequentes gerariam a necessidade de novas conformações e, consequentemente, novos conflitos. 

Desse modo, à medida que entramos em contato com nosso mundo interno e o assumimos como realidade válida, entendemos que nossas percepções, necessidades, desejos mudam conforme nos aprofundamos na reflexão sobre nós mesmos. A mudança passa a ser vista como inevitável – e até desejável -, pois não temos como prever como nos sentiremos e, muito menos, quais situações nos serão apresentadas pela vida. Viver é dinâmico e compreender isso pode ser libertador.


Para finalizar


Para concluir, ao ler este texto, talvez você pode ter tido a sensação de que esses princípios servem para a psicoterapia como um todo, tanto de homens quanto de mulheres. Então digo que sim, sua impressão está correta, pois os objetivos gerais da psicoterapia são os mesmos, independentemente do gênero da pessoa atendida, o que muda são os elementos vivenciais trazidos por cada pessoa para a psicoterapia. Parece pouco, mas não é.

São justamente as vivências que diferenciam o conteúdo da psicoterapia, pois elas refletem nossa relação com o mundo e a forma como a compreendemos. É neste ponto que as psicoterapias de homens e mulheres se diferenciam, pois o gênero desempenha um papel importante na forma como somos inseridos do mundo, determinando o tipo de pressão social a que somos submetidos e também as possibilidades de enfrentamento diante destas pressões. 

Portanto, ao contrário do que se defende no pensamento popular, não existe uma essência masculina e uma essência feminina. Masculinidade e feminilidade são construções sociais e históricas a partir das quais as subjetividades são construídas. 

Sendo assim, trabalhar com o masculino no consultório significa tomar a subjetividade como ponto de partida, pois é nela que se encontram as vivências individuais que, em relação com contexto histórico mais amplo, preenchem os sentimentos e as ações de sentido.

Espero que tenham gostado deste conteúdo que compartilho aqui e que ele possa abrir portas e caminhos para mais perto de si. 

Até o próximo!

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