Em busca de Fundamentação Fenomenológico Existencial para Processos de Coaching de Carreiras

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Márcio Melo Guimarães de Souza


Adaptado do Artigo apresentado no II Congresso Internacional de Fenomenologia e Psicologia e IV Congresso Nacional de Psicologia e Fenomenologia

 

Atualmente, a prática do coaching encontra-se bastante difundida em nossa sociedade. Pela própria natureza do trabalho de coaching, vemos sua aplicação nos mais diversos contextos. Para todo lado vemos, coaching de vendas, nutricional, de exercício, de carreiras e tantas outras aplicações das metodologias de coaching. 

Justamente por sua natureza diversificada, o coaching tem sido alvo da simplificação de seus princípios e de um esquecimento das bases teóricas que deram origem a esta prática. 

Consequentemente, assistimos à banalização da prática do coaching nas mais diversas áreas de atuação e as decorrentes críticas contra os excessos de alguns profissionais da área. Acompanhe a leitura e saiba como a Fundamentação Fenomenológica Existencial caminha junto dos processos de Coaching de Carreiras:

 

Fundamentos, teorias e metodologias diferentes: uma grande salada metodológica

 

Como orientador de carreiras, tendo acesso a narrativas de profissionais dos mais diversos campos de atuação, compreendo que, em toda área de atuação, é possível encontrar tanto profissionais preparados com a necessária postura ética frente ao exercício profissional, quanto aqueles que seduzidos por modismos, exercem a profissão sem o necessário aprofundamento teórico e sem os cuidados éticos exigidos por seu campo de atuação. 

Em minha opinião, neste ponto encontra-se o grande desafio de quem procura a assistência de um destes profissionais: saber em qual destes grupos se enquadra o profissional que o atende.

Como entusiasta da fenomenologia, acredito que qualquer método torna-se vazio quando desvinculado de suas bases ontológica e epistemológica. Eis aí a primeira fonte de confusão: nos cursos de coaching, existe uma ênfase muito grande nas ferramentas que podem ser usadas no processo e que, quase sempre, são apresentadas já distantes dos alicerces teóricos que fundamentam sua criação e delimitam suas possibilidades de aplicação. 

É possível encontrar profissionais misturando no mesmo discurso psicologia cognitiva, positiva, programação neurolinguística, técnicas de regressão, hipnose e muitas outras. O resultado é uma grande salada metodológica sem nenhum respeito aos fundamentos e, muito menos, à compatibilidade epistemológica dessas diferentes teorias e metodologias.

Neste contexto, é impossível não lembrar da discussão de Heidegger a respeito da era da técnica, caracterizada justamente pela tecnologia que é vista como finalidade é não mais como meio para algo. Segundo Heidegger, o pensamento que calcula, característico da era da técnica, e marcado pelo afastamento do pensamento com relação a suas raízes. Nesta banalização já antecipada por Heidegger reside o grande perigo que os críticos ao coaching apontam. 

Na tentativa de ajudar, o profissional que não domina os fundamentos de sua prática, acabe provocando danos a seus clientes ao invés dos benefícios esperados por este. Este é um risco presente em todas as relações de ajuda, principalmente naquelas que não contam com os devidos cuidados por parte do profissional que se dispõe a ajudar.

 

Um pouco sobre o Coaching e suas possibilidades de aproximação com a Fenomenologia Existencial

 

A origem do termo “coach” remonta a um veículo do século XV, movido a cavalo, surgido na vila de Kocs na Hungria. Este veículo é chamado de charrete em português e sua principal característica é a de caber um condutor e um passageiro. Este é o sentido original da prática do coaching: um veículo que permite que um coach auxilie seu coachee a atingir uma condição desejada. 

De alguma maneira, a prática do coaching sempre esteve inserida na história da humanidade. A “Arte da Guerra” de Sun Tzu foi escrita para orientar novos generais a respeito das diferentes estratégias de guerra. Da mesma forma, “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel foi escrito como forma de orientar monarcas a manter e aumentar o poder sobre seus súditos. Estes livros são tão atuais que continuam fazendo parte das leituras de cabeceira de políticos e de empresários de sucesso.

Nos campos das artes e dos esportes, o coaching também sempre esteve presente. Os aspirantes a artistas, costumavam ir trabalhar para outros artistas já renomados com o objetivo de aprender as diferentes técnicas relacionadas à prática artística em questão até que fosse considerado um artista “maduro o suficiente” para seguir uma carreira autônoma. 

Mas, foi no campo dos esportes que a prática do coaching floresceu, pois de forma geral, a formação de um atleta inclui a identificação de um indivíduo jovem e com grande potencial para um esporte específico. A partir desta identificação, esta pessoa é treinada para obter o máximo rendimento naquele campo esportivo.

 

A aplicação de estratégias de coaching em diversas áreas

 

Foi na década de setenta que Timothy Gallwey trouxe à tona a possibilidade da aplicação das estratégias de coaching para as mais diferentes áreas onde o desenvolvimento do potencial humano possa ser necessário. Em seu livro “Jogo Interior do Tênis”, Gallwey aponta a necessidade de observar não apenas a capacidade técnica mas, principalmente, a atitude mental do atleta a fim de se obter o rendimento esperado. 

A grande diferença desta nova abordagem estava na ênfase dada à autoconsciência do atleta. Ao invés de corrigir o atleta e ensiná-lo qual a forma correta, ele questionava o atleta para que este percebesse por si mesmo quais movimentos eram ineficientes e quais ajudavam a melhorar sua performance. 

Embora Gallwey tenha escrito seu livro a partir de sua experiência como treinador de tênis e com o objetivo de desenvolver atletas profissionais e amadores, logo o potencial de sua metodologia foi percebido por empresas de diferentes segmentos.

Na década de 90, um piloto de automóveis chamado Sir John Whitmore desenvolveu um dos modelos de coaching mais usados em todos os tempos: o GROW, um anagrama em inglês para:

 

  • GOALS – consiste na identificação das metas que o cliente visa atingir, não apenas nas sessões, mas a longo prazo;
  • REALITY – consiste na exploração dos fatos, sentimentos e expectativas que envolvem o problema levantado pelo cliente. Não se trata ainda da resolução de problemas, mas da configuração de uma base realista para que o processo de coaching não se desenvolva a partir de suposições equivocadas.
  • OPTIONS – trata-se da exploração das possibilidades de ação do coachee visando a resolução do objetivo estabelecido para o processo de coaching. 
  • WRAP UP OR WILL – aqui o foco está em estabelecer quais são os diferentes passos que o cliente precisará dar na direção da conquista de seus objetivos . Também são analisados possíveis obstáculos que possam ser vivenciados.

 

Tal discussão pode causar estranhamento em psicólogos, principalmente ao levarmos em consideração a ênfase dada no adoecimento mental em toda tradição da ciência psicológica. 

Contudo, van Deurzen (2012) afirma que “a liberdade da abordagem existencial e seu foco no diálogo direto e franco são naturalmente compatíveis com o pluralismo e com o pragmatismo do coaching” (posição 296). A mesma autora também aponta para o desafio de se aplicar um  complexo arcabouço filosófico como o da fenomenologia existencial a uma prática marcada pelo pragmatismo como o coaching.

A mesma autora aponta que esta aproximação entre o aprofundamento filosófico e o pragmatismo das ciências aplicadas já foi feito pela psicologia fenomenológico existencial. Muito embora, psicólogos desta abordagem gostem de se anunciar como filósofos, a psicologia tem em seu DNA as características de uma ciência aplicada que busca soluções para problemas vividos por indivíduos em suas relações consigo mesmos e com a sociedade. 

 

A diferença entre Psicologia Fenomenológico-existencial e outras correntes psicológicas

 

A grande diferença da psicologia fenomenológico-existencial, em relação às outras correntes psicológicas, está em sua ontologia, que vê o homem como poder-ser e em sua epistemologia que irá valorizar o vivido e o experienciado em detrimento do dado concreto e objetivo.

Mesmo com as dificuldades desta aproximação, é possível identificar alguns pontos de contato entre a filosofia existencial e a prática do coaching. Por exemplo, a ênfase dada às nossas escolhas

Na filosofia existencial, as escolhas são compreendidas como consequência de nossa condição de liberdade que exige constantemente de nós um posicionamento diante dos elementos fáticos apresentados pelo mundo. Já no coaching, as escolhas são compreendidas como parte de sua atitude diante dos objetivos a serem atingidos.

Por exemplo: se o seu objetivo é importante para você, é esperado que você faça escolhas que o coloquem na direção de sua realização.

Isso nos leva a outro ponto em comum. Na fenomenologia existencial, o homem é visto como um ser orientado para o futuro. O passado é importante para que eu compreenda quem sou e possa visitar minha história na busca por esta compreensão. 

O presente é visto como nosso campo de realização, o único espaço onde cabe a ação que concretizará o futuro, transformando-o em passado e o futuro é a referência que guia nossas escolhas e dá um sentido ao presente. No coaching, o futuro é visto exatamente da mesma forma, como referência que dará um sentido às nossas ações presentes.

 

Aportes da Fenomenologia para a compreensão dos Processos de Coaching de Carreiras

 

É muito comum que, em processos de coaching de carreiras, a questão da classe social apareça no discurso do cliente que acredita não ser possível “crescer na vida”, pois nasceu em uma classe social menos favorecida, ou também aqueles que dizem não ter “pistolão” e que, portanto, não podem almejar um futuro diferente de seu passado. 

A compreensão da facticidade

Na Fenomenologia, diferentes autores apontam para a importância da compreensão da facticidade que se impõe sobre o ser. Trata-se exatamente do reconhecimento de que, ao sermos lançados no mundo, este já encontra-se configurado e impõe a este ser suas próprias condições.

O campo da liberdade

Sartre aponta que não escolhemos nossa família, classe social, nacionalidade e muitas outras variáveis que determinarão a nossa existência. Mas ao contrário do fatalismo, Sartre também aponta que este mundo que não escolhemos é o nosso único campo de liberdade, é o espaço onde realizamos as escolhas que possibilitarão a realização de um futuro projetado. 

A responsabilidade

Cabe apenas a cada ser assumir a responsabilidade por sua existência, afinal, apesar das condições impostas pelo mundo, apenas o indivíduo pode fazer as escolhas que dizem respeito a seu futuro. Este também é um dos elementos centrais em qualquer processo de coaching de carreiras.

A indigência própria da existência

O caráter de ser lançado e a impossibilidade de escolher as condições a partir das quais escolhemos, anunciam a indigência própria da existência. Heidegger escolhe este termo, justamente para apontar o caráter precário da existência, que apesar de todo e qualquer esforço, não oferece garantia alguma. Assim, a qualquer momento, o caráter fático da existência pode se mostrar e acabar com todas as tentativas de garantia construídas pelo indivíduo. 

Angústia como parte da existência

Neste contexto, a angústia torna-se parte da existência, pois não escolhemos existir, nem tampouco as condições da existência e, ainda assim, não podemos esperar por garantias. A este respeito, Heidegger nos alerta que ser livre é criar condições de possibilidade para atender ao chamado do ser. 

A única saída: o engajamento

De uma forma mais pragmática, Sartre alega que, apesar da falta de garantias que caracteriza a angústia, a única saída é o engajamento, ou seja, assumir a responsabilidade por nossas escolhas e assumirmos a liberdade como condição da existência.

 

A condição para experienciarmos a autenticidade

 

Apesar do caráter precário e indigente da existência, este é o nosso único campo de realização. Neste sentido, cabe ao ser assumir uma condição que Heidegger chama de cuidado. Trata-se de estar atento para ouvir o chamado do ser e fazer escolhas que atendam a este chamado. Em uma linguagem mais clara: precisamos entender o que a vida espera de nós e escolher como iremos nos relacionar com estas expectativas. Fazemos isso através de nossas escolhas e esta é a condição para experienciarmos  a autenticidade.

Todas estas dimensões estão diretamente relacionadas com o processo de coaching de carreiras, pois ao ajudarmos o coachee a compreender sua relação com a existência, com a angústia derivada desta, podemos também ajudá-lo a ter condições, tanto para escutar as demandas que a existência o impõe quanto para fazer escolhas conscientes e plenas de sentido diante destas.

Uma das formas: promover o engajamento com escolhas compatíveis

Desta forma, mesmo através de um trabalho pragmático como o coaching, podemos promover o engajamento na existência livre que exigirá do coachee escolhas compatíveis com um projeto existencial.

Outro ganho obtido pelo trabalho de coaching na perspectiva existencial é a construção de uma narrativa de si mesmo, pois o coachee é convidado a ter consciência sobre seu passado, vislumbrar horizontes futuros como forma de iluminar suas escolhas no presente..Tudo isso, permite ao coachee uma experiência existencial mais autêntica que o fortalece para enfrentar as vicissitudes impostas pela facticidade.

A título de finalização, gostaria de alertar que, de forma alguma, pretendo esgotar um assunto tão denso em uma apresentação tão breve, mas espero ter conseguido apresentar, mesmo que brevemente, a forma como faço esta aproximação entre campos que parecem tão distantes como o coaching de carreiras e a fenomenologia existencial.

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